por Don Chevalier

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

três - o amor.

Quando meus pais entraram no hall do hotel Le Petit, já não havia nenhum hóspede acordado, nenhuma luz acesa - exceto por um abajur sobre o balcão, iluminando o recepcionista da noite fazer palavras-cruzadas. Estava entretido o suficiente em testar seu vocabulário, para não se importar com a chegada deles, nem lhes pedir explicações ao sentarem no sofá do outro lado da sala. Meu  pai confessava ser poeta à minha mãe, algo que fazia apenas a poucos amigos, nem seus pais sabiam muito bem sobre a sua real inclinação para fazer versos; contou-lhe que pretendia escrever um livro, talvez nada de novo, apenas a antologia do que já fora escrito - omitiu apenas a motivação da sua escrita, mas isso ele não iria contar a ninguém, não deixaria os outros saberem do seu medo do pecado. Seria sempre um poeta, forte e gigante, galgando o mundo sobre seus versos.

Apenas uma vez em toda a sua vida contaria sua verdade para alguém: para mim, ao entrar dos meus quarenta anos, quando foi internado com o fígado todo devastado pela cirrose. Sem forças para escrever, precisava de um padre para receber a unção e confessar, mas já não acreditava quase nada em líderes religioso, por isso mandou me chamar e, no silêncio de um quarto branco, na loucura de um homem muito doente, no medo de não poder mais ser perdoado, revelou-me quem realmente era. Minha mãe, porém, jamais saberia que, assim como ela, meu pai tinha medo de perder o céu. Eles nunca conversariam sobre religião, até por que com o tempo deixariam de acreditar que, para estar em comunhão com Deus, precisariam frequentar um templo. Suas conversas seriam sempre assim: superficiais, como naquele momento, em que cada um descrevia-se aos poucos, apenas deixando transparecer o que não feria a alma.

- Sua vez.- meu pai, depois de ler os versos que estavam em sua mão, sem explicar o motivo de lá estarem, queria saber mais sobre a mulher que lhe encantava com seu português sem erros.

Minha mãe olhava-o nos olhos, perdida em suas palavras. "O que você quer saber?". Ele queria saber tudo, gomo a gomo saborear sua história e, por fim, fazer parte dela. Seria o seu último capítulo e depois escreveriam juntos uma história. A dois, desvendariam o mundo, construiriam o castelo que chamam de amor. Viveriam um para o outro e, na vontade de se misturarem, um dia já não saberiam dizer quem vivera, quem sofrera, quem era quem. Assim, na confusão, deixariam de confessar pecados, nunca mais com o coração amargurado. "Por que você veio pra cá?". Ela nunca tinha pensado na resposta dessa pergunta e, por um minuto, percebeu que não havia resposta certa - diria que estava em fuga de seus pais, do judaísmo e das proibições? Não, jamais falaria isso, nem sequer gostava de repartir com sua consciência ser uma fugitiva. Não viera estudar. Não pretendia trabalhar. Ficaria só por um tempo, enquanto lhe durasse o dinheiro mandado pelos pais mensalmente e suas vontades de procurar algo descente para fazer. Há quatro meses estava na França, renovando a estadia no Le Petit e, por algumas raras ligações, mentindo aos pais que estava tudo bem. Nada estava bem - começando pelo fracasso em seu primeiro emprego, que conseguira, numa padaria, fazendo para o gerente a receita de pão de ló de minha avó. O rapaz que coordenava a cozinha, deixou-lhe responsável pelos doces, junto de outras duas francesas branquelas. Sabia fazer apenas pão de ló, mousse de chocolate e pudim de laranja; alguma coisa mais, se tivesse a receita, mas não tinha o talento para cozinhar de minha avó e, com pouco tempo de trabalho, o gerente chamou-lhe e pediu que fizesse profiteróles. Sem receita, sem medidas certas, sem uma segunda chance. Tentou lembrar alguma parte da receita, que fizera poucas vezes, mas assombrava seus pensamentos o pão de ló recoberto por açúcar de confeiteiro. O que era pra ser uma tentativa de profiteróles tornou-se uma massa esbranquiçada que, pela aparência, parecia um roux e, pelo sabor, um punhado de farinha doce - posto no forno, desmoronou.

Pela humilhação, decidira nunca mais procurar emprego e, por isso, viver apenas do dinheiro vindo do Brasil, enquanto viesse, depois voltaria com suas malas e cheia de lembranças. Gostaria, na verdade, de fazer faculdade e passar mais quatro anos por lá, mas seus pais já tinham acordado o prazo máximo de permanência: um ano. Por odiar ser uma bon vivant, minha mãe passou a frequentar um curso sobre literatura francesa, por isso lia Arthur Rimbaud e outros tantos poetas que jamais teriam suas poesias traduzidas para o português, não por falta de quem quisesse fazê-lo, mas por acreditarem que das línguas latinas, apenas o francês tinha sonoridade suficiente para ostentar aqueles versos.

- Eu vim estudar literatura. -  disse, depois de algum tempo de reflexão, achando que não haveria nenhum problema em omitir algumas verdades num primeiro encontro. Mal sabia que, no futuro, viveria através de mentiras e se manteria viva apenas para lhes prolongar a existência. Mentiria para não ferir ninguém, por mais que estar repleta de uma vida falsa lhe matasse um pouco todo dia. Seria uma boa mãe, uma boa filha, teria um casamento perfeito, mas ao se olhar no espelho do banheiro toda noite antes de dormir, não veria apenas uma mulher, mas uma legião de sombras de mulheres diferentes que lhe assombraram e compunham. Naquele momento, ao omitir ser judia, estava cumprindo apenas o que pactuara consigo: ser apenas Gabrielle, do jeito que quisesse, por que quisesse, mostrando-se como quisesse. Um dia, num alvorecer com pássaros cantando, entenderia que sua viagem à França fora o início do seu deleite e do seu martírio. Um dia muito distante de si. Sem poder prever o futuro, sorriu pela boa resposta.

O relógio cuco, preso à parede atrás da mesa da recepção, alertou já serem cinco horas da madrugada e assustou o rapaz fazendo palavras cruzadas, que tirou os olhos da revista de divertimentos e perguntou ao casal se realmente tinham um quarto. Meus pais se olhavam fundo nos olhos, viajavam um dentro do outro, procurando ter certeza que dali nasceria alguma coisa. Um amor, talvez, um amor! Algo que percorresse junto deles a eternidade, que ficasse depois das palavras e do silêncio ao acabar a noite. Procuravam na alma do outro o que tirasse o sono, para sonharem acordados até o fim da noite e, mais uma vez, se encontrarem descansados e prontos para amar de novo. Quando o amor brota, vem com uma fúria indomável de erva daninha devastando tudo que há pela frente, levando ao pó os sentimentos, a sanidade, a alegria em estar completo sozinho, para germinar uma coisa nova dentro de nós, algo que faz cantar dias e dias uma canção espontânea, dar um fruto ao mundo que não sabíasse da existência. O amor é uma praga, mas no alto de sua folhagem bruta deixa beijar o céu uma flor amarela, como uma gota de luz, uma fagulha mais brilhante que o sol, dissimulando a devastação com seu jeito sublime, com sua força de flor incandescente. E a gota brilhará  no infinito enquanto existirem manhãs; se vier a noite, dormirá quieta, na espera do alvorecer, para então, reabrir e encantar novas almas - sempre... sempre.

Vagarosamente minha mãe recostou a palma da mão quente sobre o joelho do meu pai - os olhos sempre perdidos. Aquele instante poderia durar uma eternidade ou durou - bem mais, um tempo que pareceu secreto, somente deles, uma janela secreta bater dos minutos no relógios, como se pertencessem a um mundo paralelo, uma realidade oposta, em que fossem somente dois. Estavam densos como a respiração rarefeita que lhes deixava o corpo com dificuldade, nem o ar queria voltar para a realidade. Ofegantes, esperavam concretizar o que sentiam com um beijo, nada animal, um trocar de almas pelos lábios, misturando-se para nunca mais encontrar o ponta do fio que os enovelou. Pelos lábios, diriam sim um para a história do outro, aceitando (fosse o que fosse) estarem juntos. O rapaz batendo o lápis de ponta gasta sobre o balcão perguntou novamente se eles subiriam para o quarto antes do amanhecer.

- Sim, já estamos indo. A chave do quarto 12, por favor. - minha mãe respondeu, voltando a realidade do pequeno hall, com um cheiro estranho de menta, eucalipto, cigarro e pão. - Qual o seu quarto, Francisco?

- Quarto 27, por favor. - entendendo que não fariam mais nada naquela noite; deixariam suspenso o gran finale para um momento mais oportuno, em que só sentissem o próprio cheiro, experimentassem o próprio gosto e estivessem a sós.

Sem trocar de roupa, após entrar em seu quarto, meu pai deitou na pequena cama de solteiro bem ao lado da janela e ficou observando Paris. Já despontava bem ao longe os primeiros raios de sol e, diante do breu azul escuro, a Torre Eiffel iluminada era mais uma estrela, tão bonita quanto as outros. No reflexo do vidro da janela, via difusamente o sorriso de sua amada, o jeito meigo que virava o rosto envergonhada antes de rir. Podia até sentir os cabelos dela roçando seu pescoço. Estava inebriado e percebeu que embriagar-se de amor era bem melhor. Em um corredor parelelo ao seu, minha mãe tirada a maquiagem do rosto com um algodão encharcado de um líquido bem perfumado e pensando em seu amado. Já se apaixonara outras vezes e sentia que dessa vez era diferente - das outras vezes não tinha tanto medo de ficar sozinha depois do fim. Odiava pensar tanto no fim, sempre em como suportar o peso das lágrimas, mas acostumava-se. Sempre parecia pronta, mais tarde ou mais cedo, para voltar à solidão, só que dessa vez temia mais. Temia pois o fim significaria que Paris não valera a pena nem sequer no amor, então, de súbito, achou que ele poderia não gostar dela, talvez estivesse apaixonada sozinha. "Não, ele gosta de mim. Gosta até mais que eu gosto, ele parecia entregue ao olhar nos meus olhos. Maldito recepcionista da noite!". E ao olhar seus olhos pelo espelho, os encontrou cheios de água... fazia tempo que não chorava com sinceridade. "Tudo isso é besteira, para de pensar nessas coisas, Gabrielle" e decidiu viver um amor do jeito que fosse, pois quando se ama da maneira certa, o fim não é uma hipótese e a paixão, uma realidade imortal. Desenhou com o algodão um pequeno coração no ladrilho da parede do banheiro e foi dormir.

*** *** *** *** ***

No terceiro dia de conversas, minha mãe foi visitar meu pai em seu trabalho numa cafeteria. Quando chegou, ele escrevia o pedido de uma cliente alemã falando um francês péssimo, por isso não conseguia entender muito bem se ela queria um café expresso com leite ou um cappuccino. Um pouco constrangido, pediu que apontasse no cardápio o que desejava tomar. Tivera sorte dela ser uma turista idosa muito bem trajada e educada, consciente de sua péssima pronúncia que, pedindo-lhe desculpas, solícita colocou o dedo sobre uma das opções. "Um momento, perdoe a confusão, logo trarei seu pedido". Ao virar-se para deixar a cliente em paz, levou um susto ao ver numa mesa próxima Gabrielle com o braço erguido, como se lhe chamasse. Um pouco encabulado, pediu com um gesto de mão aberta que esperasse deixar os outros pedidos na cozinha.

- O que você está fazendo aqui? Veio me ver ou por acaso?

- Pode falar em português comigo, eu entendo... vim te fazer uma proposta: vamos almoçar juntos num lugar que eu já escolhi.

Meu pai aceitou, mesmo sem saber onde iriam - por ter a sensação de que seria um encontro, enfim um encontro de verdade, agendado com antecedência, com o consentimento dos dois, diferente dos muitos esbarros na hora do café da manhã e antes de dormir. Quando o relógio de parede juntou os ponteiros no 12, saíram pelas calçadas de Paris, garoava e um vento leve e frio fazia a echarpe de minha mãe voar calmamente. Meu pai, metido num sobretudo preto, mais parecia um agente secreto que um garçom. Andavam e conversavam em português, criticavam e elogiavam os franceses e nenhum dos que passavam lhes entendia o dialeto. Estavam novamente sozinhos num mundo próprio. Minha mãe levava uma grande bolsa a tiracolo, na qual estava guardada a comida, e por vezes esbarrava em outros pedestres. "Desculpa!", "Touriste...", "Educação de dar inveja, monsieur" - e o português parecia machucar os ouvidos franceses que o escutavam.

Andaram mais do que imaginavam, subiram uma ladeira interminável, desceram, viraram, como se as ruas parisienses fossem um mar bravio e eles, com a coragem de um barco a vela, quebravam as ondas, cortavam o Cabo da Boa Esperança em forma de ponte para, em paz e maravilhados, chegarem ao destino tão aguardado: a Catedral de Notre-Dame. Diante deles toda a sua beleza gótica, toda a sua imensidão, suas torres tocando as nuvens, como uma ligação direta ao paraíso, o divino tão próximo do homem. Seus vitrais cheios de cores faziam um jardim de luz refletir nos olhos. Hipnotizados pela cor leitosa, pelos tantos detalhes talhados na superfície, sentaram num banco ali por perto, absortos pela tragável imponência sagrada, comeram os sanduíches de patê e salada como se ceiassem com o próprio Deus, tomaram o refrigerante escuro e ácido, como se fosse o vinho da Santa Ceia. No pesar do silêncio, sentiam que ali, no meio de um monte de turistas desconhecidos, poderiam confessar em oração sinceramente - não por causa de uma religião pregada debaixo daquele teto curvo, mas pelo toque calmo e eterno entre a torre pontiaguda e o dedo divino. Abaixaram as frontes quase ao mesmo tempo e oraram baixinho, com pedidos parecidos: pela família, pelo coração, pela viagem, pela vida, pelos pecados, por tudo que ainda viveriam juntos e não podiam prever. Meu pai deixou o sanduíche no colo, segurou a mão de minha mãe e juntos, cabeça baixa,  alma contrita, sorriram.

- É bonito demais.

- Eu sabia que você ia gostar. Eu me apaixonei assim que a vi de longe, precisava vê-la de perto e, principalmente, repartir a experiência com alguém. Precisava estar aqui com você, porque você sabe o que é querer gritar e ninguém entender sua língua, ninguém pra te socorrer. Você sabe o que é estar sozinho, procurar o colo do amor, procurar quem realmente lhe conheça, mas encontrar apenas rostos desconhecidos. Você sabe, eu sei que sabe, eu leio nos seus olhos. Eu quis muito vir pra França... achei que encontraria liberdade andando debaixo do Arco do Triunfo, que teria a alma lavada ao encostar a mão no Rio Sena... achei que fugir do protecionismo dos meus pais traria maturidade e eu só fracassei... me iludi... me perdi e busquei e busquei encontrar uma paz, uma felicidade para me completar, afinal estamos em Paris! Não fora aqui o berço da Belle Époque? Toda a efervecência de um mundo revolucionário? Os cancans, os cabarés, o cinema, onde está a paz e a felicidade em tudo isso? E de que me vale a Belle Époque, se eu daria tudo para ver o sol raiar e simplesmente sentir-me quente, sem precisar de tantas roupas para suportar uma garoa? Paz, paz mesmo, paz de verdade, só encontrei agora, aqui, numa oração, que poderia ter sido feita em qualquer lugar do mundo, ao pé da minha própria cama no Brasil. Eu definitivamente precisava vir aqui com você pra entender tudo isso e confessar em português... obrigada.

Minha mãe recostou sua cabeça no ombro do meu pai, abraçou-lhe à altura da barriga. Pareciam apenas um, completos. E os rostos foram se aproximando vagarosamente, religiosamente, reverentes. Naquele  banco de praça tudo era muito sagrado, tudo poderia ser abençoado, se fosse pedido com sinceridade - como desejam aquele amor. Beijaram-se e, sob aquela manhã clara e bonita, brotaram duas novas flores amarelas. Dois raios de luz a consumir a alma de novos amantes, a irradiar sua beleza aos turistias que observavam de longe. Sob a sombra da catedral, o milagre do amor se concretizou.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

dois - minha mãe.

Meus avós maternos fugiram para o Brasil à época da Segunda Guerra Mundial, por serem judeus e temerem que o holocausto dominasse todo o continente europeu. Venderam o que tinham - que não era pouco: casas, uma pequena propriedade afastada da cidade, carro, animais e uma padaria em Rennes. Guardaram as jóias, as roupas, os retratos de família e uma Torá de gerações passadas em caixas e, cheios de incertezas, vieram a um país totalmente novo. Receptivo? Quem sabe, faltavam informações para terem certeza, pois quem vinha nunca mais voltava, nem sequer mandava cartas para dizer se estava bem: simplesmente esquecia o passado escuro na Europa tomada pelo medo. Meus avós também, acima de tudo, queriam se libertar do medo. Viver em paz.

No Brasil, o café ainda era extremamente rentável, mas a burguesia industrial estava cada vez maior e mais forte, intimidando os cafeicultores que, começando a perceber o início da crise do ouro negro, temiam perder todas as suas regalias. A fumaça das máquinas era cada vez mais presente, mais espessa, mais cheia de vida, sugando o fôlego de operários e operários adestrados para abaixar e reerguer  botões. A fumaça, o concreto, os imensos galpões, nos quais tudo era gerado de matéria-bruta, manchavam a vida de uma cor opaca e um gosto azedo de tragédia e cinzas. Cidades grandes começavam a despontar. Foi em São Paulo, a cidade-máquina, que meus avós maternos se instalaram, assim como a maioria dos imigrantes europeus - aos farrapos, perdidos, braçais. Fazendo a  ecônomia funcionar: traziam o conhecimento que, por causa da Segunda Grande Guerra, ficara marcado nos corações e nas cicatrizes fundas a percorrer os braços nus - feitas pelas ferrozes máquinas devoradoras de cansaço humano.

Meu avô, primeiramente, se misturou às gentes de uma fábrica de tecelagem, emprego que não pretendia manter por muito tempo. Já pensava em como investir o dinheiro previamente reservado em algum bom negócio - talvez se associar a uma grande empresa. Um dia andando pelo centro, voltando cansado da primeira semana de trabalho, maldizendo o calor infernal que fazia em meio as máquias, encontrou um dos seus amigos judeus que nunca mandara carta para dizer como passava no novo país. Conversando um pouco, descobriu que Benjamin tinha um cargo alto numa das primeiras indústrias alimentícias do Brasil. Meus avós tinham adquirido boa parte de suas posses na França criando receitas de pães, massas, tortas, bolos e quitutes - minha avó inventara um pão de ló conhecido em toda a região de Rennes. Se não fosse pela guerra, a ideia deles era abrir uma outra padaria maior e mais refinada em Paris. Veio, porém, o nazismo, o medo, a falta de tudo, o dinheiro contado, a vida escondida - judeus. Por isso, foram obrigados a fugir como animais para o Brasil, mas agora viam novamente o brilho intenso da esperança lhes ofuscar a vista: menos de um mês após desembarcarem, comandavam a cozinha, com parte nos lucros, da primeira fábrica de pães de São Paulo e, muito provalmente, do país.

Em meio a todo o alvoroço de procurar casa, emprego, oportunidades novas, aprender o idioma, minha avó sofria intensos enjoos e possíveis estados febris. Assim que veio a enfermeira para vê-la, não teve dúvida: estava grávida, talvez já há dois ou três meses. Primeiro, o susto; depois, o riso. Grávidos! Seriam pais! Ganhariam uma fagulha de amor e paz e esperança na pequena forma de um bebê - para romper o pranto e a angústia aprisionados nos peitos dos dois imigrantes. O Brasil começava-lhes a parecer bonito: era fértil. Dava vida a quem procurava uma nova história para contar. E a vida foi crecendo dentro ventre, deixando esbarrar às vezes a barriga na esteira de biscoitos. Os funcionários, na sua maioria mulheres, riam-se e preocupavam-se com a gravidez de Adele - a francesa com traços bonitamente fortes, ríspidos, sofridos e sorrisos escassos. Quem a visse poucas vezes, achava-a feroz e intragável, pela falta de vocabulário e os olhos a devorar alegrias. Era uma mulher ferida, com as lembranças enferrujadas pelo nazismo - perdera muita gente de sua família judia e, mais uma vez, via-se sem pátria. O Brasil mostrava-se receptivo, colorido, com suas danças, suas músicas, sua diversidade de culturas, talvez um bom novo país para chamar de seu.

Ela, porém, simplesmente não conseguia retribuir os sorrisos, porque tinha medo do apego. Medo de um dia ser novamente expulsa e ter que esquecer sua história num baú sombrio da memória. Tinha medo de criar raízes num lugar onde seria imigrante sempre. Por isso, não sorria, não se abria, não se deixava conhecer. O enigma era sua forma de estar completa, de estar repleta da única pátria que jamais a deixaria partir: ela mesma. No trabalho também encontrava um paraíso. Sempre que ajudava os menos habilidosos a colocar a massa crua dentro das formas, sentia-se elevada ao céu e deleitava-se em ser, por debaixo de todas as máscaras de insipidez, uma mulher boa. Difíceis eram as horas em que estava longe da fábrica, pois amava o que fazia, amava sentir o cheiro da fornada nova de biscoitos e pães, amava saber, no fim do dia, que sua receita de pão de ló estava cada vez mais presente nas casas brasileiras. Amava, mesmo que renegando a idéia, o fato do Brasil tornar-se sua pátria. Depois dos seis meses de gravidez não pôde mais sair tanto de casa - não tinha pique, não conseguia ficar tanto tempo de pé e, desagradavelmente, tinha que ir muitas vezes ao banheiro num mesmo dia. Enclausurada em casa, pois odiava não poder fazer nada, lia o Torá e orava agradecendo pela gravidez e pela estranha sensação de gostar de janeiro, por maior que fosse o calor.

Após uma madrugada e manhã de contrações, sete meses depois de saberem da gravidez, nasceu. A enfermeira, ainda sem lavar o bebê choroso, deu-lhes a notícia com alto grito: É menina. Meus avós pouco entenderam - o português ainda lhes parecia um monstro, um enigma sem resposta a lhes sugar muitas horas de estudo. Sabiam falar o necessário na fábrica: não é assim, aprenda comigo, menos massa, pão, biscoito, pode ir embora, farinha, chocolate, ovos, fermento, receita e algumas outras palavras avulsas e pequenas frases - e o mais difícil era pronunciar o til (~). Mal sabiam ainda as complicações para flexionar todos os verbos, ainda mais os irregulares. Ou pior, usar conjunções - até o momento, ninguém lhes disseram que, por conta de uma palavrinha pequena, duas orações podiam interagir de diversas formas. O mundo se baseava nas frases sem vírgulas - da letra maiúscula ao ponto final, com apenas um sujeito, um verbo mal conjugado, talvez dois objetos, pouquíssimos advérbios e quase nenhuma figura de linguagem. Se feito necessário conversar algo mais sério com brasileiros, ou falavam em inglês ou pediam para Benjamin traduzir.

Por isso, quando a enfermeira gritou "É menina", acharam que ela falava outro dialeto. Sabiam por intuição que o sujeito vinha antes do verbo e, se é fosse o verbo, não havia sujeito. Sabiam o que era pão, biscoito, farinha, ovo, chocolate, trabalhos, os números estratégicos para se comunicarem com os funcionários e sócios da fábrica, mas ainda não sabiam o que era menina. Eufóricos, pouco pensaram na sentença incompreensível, queriam mesmo era saber o sexo do bebê. "O que ser?", perguntava o pai repetidamente, "o que ser?". "É menina!". "O que ser?", "o que ser?". A enfermeira, percebendo a ineficácia da frase, apontou para si própria e para minha avó - "ela é mulher, menina" repetindo pausadamente, até perceber os olhos azuis de meu avô se explodirem em alegria. "Munier menin" ele gritava agora, como se fosse "nossa filha é uma menina linda" em português. "Munier menin, Adele!". Minha avó ria cansada e, assim que puseram em seu colo o bebê, arriscou o português inventado, "munér meni" baixinho ao pé do ouvido, deu um beijo nas bochechinhas ameaçando um choro e, desde então, amou.

Em meio a amor e cheiro de quitutes, minha mãe viveu toda a sua infância. Meus avós, mesmo antes de seu nascimento, tinham concordado em contratar uma empregada que, além de ajudar nas tarefas da casa, falasse com eles e com Gabrielle sempre em português, assim toda a família aprenderia de uma vez só. Era engraçado ver a pequena menina aprendendo a juntar fonemas - "mamá, pode í lá?" - e os pais buscando traduzir a resposta obtida mentalmente em francês para o português - "não pode ir, estar frio e chover". A professora aguentava o riso, advertia o erro - "não pode ir, está frio e chove" -, assim passaram os anos: a mulata ora cozinhando ora passando e ora sendo a patroa, repreendendo os erros da fala, as frases sem sentido. Um dia decidiram chamar Rosa, a empregada mulata, para uma conversa a sós e, lendo um discurso já escrito e corrigido, ofereceram-lhe um aumento de salário e os papéis de governanta da casa e professora. Contraram outras duas mulatas, estas que efetivamente passaram a cuidar da casa e que olhavam com inveja a outra que ganhava mais para mandar e desmandar sobre elas.

Na segunda metade dos anos 50, quando passaram a dar bailes e receber os convidados falando português, meus avós perceberam que a governanta cometia erros crassos, os quais os ensinara e eles papagaiavam por aí, imaginando ser o português mais culto que existia. Seria um privilégio mim dançar com você - e os convidados achavam graça no erro, mas nada diziam. Preocupados com as pequenas minúcias, enfim, acharam melhor procurar uma escola e se acertarem com um professor de verdade. Pouco tempo depois do início das aulas reais, meus avós passaram a ter confiança na língua, a ponto de corrigir a governanta, que percebeu já não exercer nenhum controle sobre os patrões. Por fim, como temia, voltou a governanda a ser chamada Rosa e cozinhar todo dia e passar roupa quando tinha e dividir com as outras duas mulatas - que já não a olhavam com desdém, mas com pena da mulher rebaixada - as tarefas. E o português domava e encantava a casa, ficando cada vez mais bem falado e gostado. Minha mãe, porém, era  a única que preferiria falar apenas em francês com seus pais, para manter viva as origens européias. Meus avós não gostavam dos diálogos na língua materna, pois neles relembravam a pronúncia e o sotaque voltava  a fazer cócegas no português correto, que agora usavam frequentemente no dia-a-dia. Pelo anceio que tinha de resgatar as suas origens, valsear a língua na boca para falar Comment vas-tu? ou Comment t´appelles-tu?, por apreciar tanto o francês nativo, além do pouco aprendido na escola, minha mãe decidiu viajar para França e passar por lá, pelo menos, um ano descobrindo o país que seus país exaltavam com saudade.

Pouco antes de estourar a Ditadura Militar, ela deu adeus ao país tropical, levando dois casacos pesados na bagagem, pois sabia (e gostava de saber) do intenso frio parisiense. Quando o avião decolou, olhou pela janelinha a cidade ficar pequena, cada vez menor e menor. De repente, passou pelas nuvens e lá embaixo, o que eram prédios ou cidades ou pessoas ou parques pareciam a mesma massa cinzenta - pulsando em crescimento. Estava livre do Brasil, mas ainda não se amarrara à França - no meio do azul do céu, era somente Gabrielle, buscando descobrir quem realmente gostaria de ser, numa década de tantas transformações, em que a música e a cultura gritavam por liberdade, clamando em alto e bom som que a mentalidade dos "homens de mais de 30 anos" era uma tremenda besteira! Ela queria a liberdade, queria ser livre como estava livre de pátria no meio das nuvens, mas seus pais não a permitiam, diziam que essa liberdade pregada nas músicas insultava a religião e, desde pequena, ela fora ensinada a ser uma boa judia.

Toda sexta-feira à noite, minha avó acendia uma vela para receber o Shabat e minha mãe adorava ver a chama romper a escuridão da ante-sala onde ficava acesa. Brincava de fazer sombras e, certas vezes, tinha até medo dos desenhos que criava. Meus avós, quando viam a brincadeira, a repreendiam - "não brincar com o sagrado". Tentavam ensiná-la a temer a religião, a respeitar alguns costumes raramente praticados, até porque os amigos judeus de meus avós, assim como eles, pouco iam a sinagoga, por temerem ainda a perseguição. O medo era sempre uma sombra nos gostos de um povo tão sofrido. Faziam, quando dava, quando o trabalho não era muito, algumas das cerimônias, mas nada muito extravagante. Um jantar com alguns cânticos do Sidur no Rosh Hashaná e na Pessach, como forma de compensar a falta de empenho em seguir rigorosamente a tradição. Além, minha avó lia o Torá quando podia, meu avô ajudava os judeus que chegavam mais pobres que ele ao Brasil e ambos tentavam dar uma boa formação judaica à filha. Ensinaram-na hebreu, bem depois de aprender a escrever na escola. Todo dia de manhã, durante o café, ela tinha que recitar um verso decorado da Torá ou, se não fosse possível, ler um - às vezes, pelas reflexões que meu avô fazia com diversos termos em hebraico, ela chegava atrasada à escola. Quando completou doze anos, passou pela cerimônia do Bat Mitzvah, na qual foi a sinagoga pela primeira vez e última.

Como praticar uma religião que pouco fazia parte de seu cotidiano? Não sabia, mas tentava. Buscava fazer o que meus avós mandavam - apesar da falta de vontade, acendia as velas de sexta-feira à noite e se aborrecia por não poder mais fazer sombras com a claridade da chama. Como respeitar uma tradição que lhe parecia fugaz? Por que não comer carne de porco, pintar o cabelo, beber vinho? Não entendia muito bem quando minha avó explicava, mas obedecia. Obedecia sempre e renegava a vida por medo. Não tinha medo do nazismo, não se preocupava com o julgo dos homens, poderia ir na sinagoga todos os dias, desde que isso lhe significasse algo, mas não dizia nada para ela estar naquele templo. Sentia apenas medo. Um medo do deus criado por sua mãe, um deus que repreendia e mandava tempestades quando era desobedecido. Tinha medo de um deus cruel, o qual não lhe era compreensível - "por que Deus maltrataria tanto um povo? Por que Deus tira toda a felicidade dos judeus? Por que Deus não pode apenas nos amar?" e temia. Temia porque minha avó mandava e, nos olhos dela, havia sempre um furacão a emanar a ira desse deus. Minha mãe, no entanto, não acreditava que fosse assim - que Deus fosse cruel. Deus é amor e a perdoaria se errasse, mas minha avó, não - para a francesa de poucos risos o perdão não existia para ser concedido sempre, para ela toda mudança era do Coisa ruim e precisava ser evitado ao máximo.

O rock, os cabelos pintados, as mini-saias, os desejos novos por aventura: tudo do Coisa ruim. Minha mãe, apesar de sua formação, queria experimentar o mundo e descobriria com o tempo, com as próprias mãos, com as marcas na sua alma nua, com o riso ou com o choro, se tudo aquilo era do Coisa ruim mesmo. Queria experimentar muito mais que novas receitas de broas e pães - queria fazer realmente parte da efervecência cultural e de pensamento que inundava a Europa e respingava em todos os países do mundo. Esse era o motivo pelo qual gostava de buscar suas origens franceses - mantinha viva a sua rebeldia contra as culturas que seus pais escolheram para ela: brasileira e judaica. Se eles a proibiam de se encontrar, não aceitaria de pronto a língua que seus pais optaram por falar, não veria o sagrado onde seus pais viam. Seria ímpar na França, como quisesse.

Talvez pintasse o cabelo ou comesse carne de porco. Ainda não decidira. Tinha apenas uma verdade: iria viver. Iria viver a vida que as canções diziam ser a mais legal. Tinha medo das drogas, mas poderia experimentar, quem sabe? "Deus sabe tudo",  pensou e afastou a ideia de súbito balançando a cabeça. Deveria escolher entre o mundo e Deus, como dizia seus pais, como inferiam que estava escrito na Torá - então, temia. Temia perder o céu. Temia ir longe demais. Se gostasse de estar longe de Deus, cercada pelo pecado, haveria perdão? Ela acreditava que sim, mas sua mãe, não. Nem o deus de sua mãe a perdoaria. Por isso, não iria longe demais, nunca - se afastaria o pouco suficiente para deixar apenas uma parte do corpo envolta nas trevas do pecado. Mas manteria uma oração, sempre. Um pedido de perdão. "Pode existir um meio-termo, tem que existir um meio-termo. Não posso usar drogas, mas posso usar mini-saia. Posso beber vinho, desde que não coma carne de porco... e assim eu descobro o mundo: evitando ali, abusando aqui, sempre pondo um peso e um contra-peso para não cair da corda". E sorriu com sua conclusão, que parecia renovar-lhe os ânimos. Percebeu que gesticulava sozinha, como se conversasse com as próprias mãos, e que o rapaz sentado ao seu lado a observava. "Bonsoir, monsieur", disse a ele e admirou-se da boa pronúnica. Pousou as mãos no colo, satisfeita. Sentiu-se um pouco mais rebelde, um pouco mais viva, um pouco mais Gabrielle e queria mais, muito mais.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

um - meu pai.

Meu pai era brasileiro, poeta, corajoso o suficiente nos anos 60 para procurar na França o amor da sua vida e escrever um livro longe de todos. Meus avós, italianos, trocaram o seu sobrenome ao registrá-lo no Brasil, como meio de... de nada. Simplesmente mudaram e, ao chegar em Paris, meu pai inventou uma forma afrancesada de dizê-lo - de Renóche para Renôque. Francisco Rennoche e, com essa mistura de pronúncias, fez sorrir a atendente do hotel, ao pedir um quarto. Meu pai falava francês com uma dificuldade incrível - detestava os encontros vocálicos, os apóstrofos, os biquinhos cômicos -, mas adorava o cheiro de Paris, o movimento de Paris, o pão debaixo do braço e, contemplando tudo e todos, a bela Tour Eiffel e seu emaranhado férrico agraciado por um não-sei-quantas lâmpadas acendidas durante a noite. Foi sob esse clima de cidade da paixão que meu pai tocou sutilmente a mão da recepcionista do hotel pela primeira vez,  uma semana após conversas e cantadas, ao dizer-lhe errado"rester dizer que você é bonita", sem saber que rester é permanecer e não, resta.

A atendente, entendendo pelo contexto a frase, riu novamente e pediu que a esperasse depois do expediente, pois o levaria para conhecer Paris que os almanaques de viagens não apresentavam. Meu pai passou o restante de tarde lendo o livro tradutor de francês para português, para decifrar toda a frase que ela dissera. Então, tomou um banho, colocou sua camiseta mais bonita e a esperou perto a um poste na calçada em frente ao hotel. Como via todos os dias inúmeros parisienses fumando, tentou fazê-lo também, mas o preço do cigarro e seus pulmões desacostumados à fumaça o fizeram tossir bastante - apagou a brasa, condenou o vendedor, o mundo, a tosse, o ridículo da cena e guardou o restante do maço no bolso. Achou que ninguém vira aquilo, nem Deus, nem seu coração, mas noite à dentro, quando os dois já haviam visitado dois bares cheios de franceses exaltados, Berthe disse-lhe que vira-o se desentender com o cigarro. Gargalhou. Meu pai ficou vermelho, roxo, azul, tímido. Talvez não fosse rebelde o suficiente para ter um barato ou fumar um quinquilhão de cigarros por dia. "Me dá os cigarettes!". E a moça de cabelos marrom claro, olhos verdes e lábios rouge acendendo um, parecia adquirir uma fisionomia feia de animal, um demônio francês. Meus avós, cristãos fervorosos, leitores da bíblia e presentes nos cultos, sempre tiveram uma posição rigorosa contra álcool e cigarros: "é tudo do Coisa ruim".

Assim meu pai fora educado: é tudo do Coisa ruim. Por isso tinha algo semelhante a pavor ao colocar goles de cerveja para dentro da boca - esta que era bebida escondida toda sexta-feira, num bar longe do bairro onde morava, para não deixar suspeita. Meu pai tinha medo do Coisa ruim e por isso escrevia. Era um fugitivo dos dogmas que lhe assombravam, das caveiras pintadas com fumaça de cigarro e com goles de cerveja trincando de gelada. Precisava esquecer um pouco as condenações em voz de seus pais ou, então, só tirar da memória o dia em que encontrou uma garrafa de uísque pela metade no escritório do pai. Será que o homem que tanto lhe dizia para nunca colocar uma gota de álcool na boca, era o mesmo que esvaziava pouco a pouco aquela garrafa? Por semanas viu o líquido se acabar e suas idealizações do pai definharem, trazendo um gosto amargo de ódio - talvez aquele homem de mãos grandes e olhos voltados para o céu não fosse tão santo. Começou a se rebelar quietamente - pelo medo, pela angústia, pela raiva, pela vontade de ter alguma liberdade, tentava ser rebelde, buscava o mundo para descobrí-lo. Saía de casa, pensando em nunca mais voltar, porém ainda pelo medo, pela angústia, pela raiva, pela vontade de ter alguma liberdade, voltava noite após noite. E cada madrugada de sexta-feira, quando entrava porta a dentro quietamente com bafo de álcool e, quase sempre, cheirando cigarro, meu pai precisava de confissão - mas não tinha padre que lhe escutasse; não podia contar para seus pais e pedir desculpas (não era forte suficiente para isso, não suportaria as lágrimas de sua mãe, a surra que seu pai daria e o ego destruído); não podia rogar ao céu, o medo que Deus lhe castigasse era maior que qualquer outro sentimento. Meio embriagado, meio louco e apenas um pouco acometido de razão, vinham-lhe a mente versos e escrevia. Escrevia páginas e páginas de estrofes lindas e dormia, às vezes, sobre os versos, abraçado a eles - como um filho, ao pescoço de sua mãe, buscando proteção para afastar os medos da consciência.

A despeito do mundo e as frustrações que recebia dele, acreditava no céu. e tinha medo de perdê-lo, se gostasse do mundo. Se gostasse tanto de passar a noite na casa dos outros, jogando jogos de azar, poderia perder o céu. Poderia ser deixado na terra, no inferno, no esquecimento. Tinha medo. Acreditava, contudo, que no céu haveria lugar para os poetas; para os poetas bons, que escrevessem sobre amor, esperança, paz e um mundo melhor - por mais que eles adorassem uma cerveja ao cair da tarde de toda sexta-feira. "O céu é um lugar para pessoas confessadas e que, a despeito da alma corroída pelo pecado, levam aos outros palavras de salvação. O céu é o lugar dos poetas!", pensava. O céu era o lugar para onde o seu coração se elevava a cada estrofe posta no papel. A poesia era sua forma de confessar e ser perdoado, principalmente, pela semelhança com a hipocrisia das palavras vazias de seu pai e pelas insistentes visitas ao bar do Alfredo - um italiano gordo e bigodudo, que ostentava um crucifixo na parede oposta ao balcão, para o qual meu pai não olhava ao chegar, mas fazia o sinal da cruz ao sair.

Por causa de todo o seu passado, teve asco ao ver os olhos deleitosos de Berthe tragando e soltando fumaça em seu rosto - mais uma vez, alguém que amava estava se condenando; deixando de ganhar o céu dos poetas, por um prazer... um instinto. Viu seu pai nos olhos dela e já não a achava tão linda. Estava arrependido de tê-la acompanhado, pois se permanecesse na ilusão platônica do amor entre o hóspede e a balconista não a veria naquela situação e, assim, na idealisão, poderia escrever-lhe lindos poemas. Depois, porém, de jogar a pituca de cigarro no chão e pisar por cima estava desmistificada: mulher mesclada ao Coisa ruim.

Entraram num terceiro bar, ela pediu duas cervejas, mas meu pai não bebeu. Sorvia a culpa de estar ali gota a gota. Quantas poesias precisaria escrever para ser perdoado? Uma tragada de cigarro valia quantos versos? Fazia contas quieto, quando foi surpreendido por um beijo. Seus lábios colados a outros com um intenso e estranho sabor ocre de cigarro e cerveja e, principalmente, pecado. Mas gostou do beijo. Gostou de ser beijado, enquanto estava de olhos fechados. Esquecia aos poucos o gosto da saliva dela e deixava entrelaçar suas almas: por instantes, preencheu o coração de amor frenético. Adquiria uma fisionomia feia de animal também. Aos corpos se juntarem num abraço apertado, veio à sua mente a voz ecoante e fantasmagórica de sua mãe: é tudo do Coisa ruim, veio seu pai jogando a garrafa vazia escondido, vieram as tantas cervejas tomadas em sua vida, vieram os cigarros que estavam guardados no bolso dela. E, com um receio enorme, abriu a pálpebra direita e o pouco que viu assombrou-lhe - ainda era a mesma mulher profana que lhe beijava.

Afastou o corpo, colocou as mãos espalmadas nos ombros dela, que ainda estava de olhos fechados, como se esperasse uma surpresa vinda dele. E veio: "Eu não posso fazer isso, me desculpe.", transtornado pelo caos interior, as palavras saíram-lhe em português. Berthe não entendeu, mas não abriu os olhos - mas, como de costume, sorriu. Os dentes pareciam até mais amarelados. Segurou carinhosa uma das mãos de meu pai, repousada sobre seu ombro, mas ele rapidamente se esquivou. Só com essa atitude, ela passou imaginar que a frase desentendida poderia não ser uma declaração de amor, por isso abriu os olhos e, com certo espanto, viu as bochechas cheias de lágrimas de meu pai, deixando o balcão em que estavam sentados para ir embora. Segurou-lhe o braço, pediu que explicasse o que estava acontecendo. Meu pai, a voz embolada em um soluço baixo, pedia desculpas em português - não para ela, mas para Deus. À porta virou o rosto para trás e viu Berthe, sem entender muita coisa, acendendo um novo cigarro. Inspecionou as paredes: sem crucifixos - por fugir do pecado, talvez estivesse perdoado, pensava. Sorriu e deixou o bar.

O caminho de volta foi dificultado pela falta de informação: já estava tarde e ninguém sabia ao certo dizer-lhe onde ficava a rua ou o hotel que procurava. Andando meio sem rumo naquela avenida cheia de pequenos bares, encontrou um telefone público, no qual estava preso uma lista telefônica. Procurou nos mapas do encarte o seu destino, mas a pouca claridade e a falta de referência não lhe permitiam saber ao certo em qual região procurar. Estava quase desistindo, pensando já em procurar um novo hotel para se alojar, quando sentiu um toque no ombro: era a Berthe. Em seus olhos ainda havia a mesma dúvida, de quem não entendeu nada - até um pouco mais de raiva. Depois de tudo que fizera no bar, estava desmistificado também. Perdera a chance de tê-la, o que não significava que deixaria de ser amável. Seria sempre amável e sorridente, como uma boa recepcionista atendendo um dos hóspedes, independente do lugar e da situação. Disse-lhe o caminho a seguir, o ônibus que o levaria até o bairro; ele pediu uma caneta e anotou tudo na palma da mão. Antes de ir embora, ela deu-lhe um tapa discreto no ombro, abaixou a cabeça e atravessou a rua chutando uma garrafa quebrada que estava perto do meio-fio. Meu pai a esperou trocar de quarteirão para reler as instruções.

Ao chegar no ponto de ônibus, ele ainda pensava em Berthe, porém de um jeito diferente: já não a amava e, por isso, não precisava vê-la como um erro. O passado estava sutilmente apagado pela borracha da simpatia dela. Era uma mulher boa sob a máscara da imprudência, tinha um coração enorme, capaz de perdoar em pouquíssimo tempo o fato dele tê-la deixado sozinha no bar. Queria, além de qualquer apesar, demonstrar amor - sorrir ao sujeito que, antes mesmo do alvorecer, desce ao seu encontro para reclamar do aquecedor funcionando pessimamente. Demonstrar amor às palavras grosseiras, ao mundo intragável, como os cigarros para meu pai. Seria para sempre uma recepcionista que sorria, informava endereços e pedia calma, enquanto o conserto estava à caminho - apenas. Uma mulher, acima de seus erros, amável. E mulheres amáveis, pensava, podem ir para o céu. Assim como os poetas. Assim como os arrependidos de todo o seu sofrimento. Berthe era Berthe. Berthe era o mundo. Berthe, aos poucos, deixava de ser o Coisa ruim e assumia o sua fisionomia dócil com cabelos marrom claro, olhos verdes e lábios rouge. Berthe era Amável. Por isso, meu pai sentiu-se perdoado. Isento da memória densa do pecado, poderia seguir vivendo - sem precisar de nenhum poema. Estava leve, confessado e pronto para voltar ao bar do Alfredo. Sem a culpa de precisar redimir-se, tirou do bolso a caneta, que esquecera de devolver, para registrar na outra mão quatro versos, os quais ganhariam mais estrofes anos depois e se tornariam seu poema mais famoso:

há sempre um amor perdido,
um perdão concedido,

um farol esquecido a nos banhar:
a vida não anda só.

Entrou no ônibus que acabara de parar. Nele, apenas o motorista e uma moça lendo um pequeno exemplar da antologia de Arthur Rimbaud. Era bonita, seria minha mãe um dia, mas naquele momento nem pensava nisso. Apenas lia e entreolhava o rapaz sentado a sua frente. Deixou escapar por entre os lábios quase ainda colados um sutil "os franceses são realmente bonitos" em português. Meu pai, com o rosto entre as mãos, os dedos entre os cabelos, os olhos entre as placas de latão do piso, escutou e digeriu a língua materna como um consolo à alma - não ficou agradecido pelo elogio, mas por escutar o valsear das sílabas em português. E quis mais, queria preencher-se do Brasil que faltava em território francês. Talvez o amor brasileiro, o calor brasileiro, ou pelo menos algo que mantivesse vivas as suas raízes... um farol esquecido que o banhasse sempre que sua vida parecesse andar só. Levou os olhos para ela, que agora traduzia baixinho os versos dos poemas - o português sussurrado fazia dela o amor que Paris ainda não o concedera.

E o caminho todo passou assim: sob o adormecer das ruas embalado pelo recitar dela, como uma mãe contando histórias para seus filhos terem bons sonhos. As luzes das janelas se apagavam uma a uma, cintilantes, como se o mundo fosse uma grande estrela. Meu pai sonhou com seu país por meia-hora, lembrando um pouco de como vivia completo e pleno dentro da casa de seus pais. Pensou no quarto do hotel: sem alma. Quantos por ali passaram, sem nada deixar? Também passaria... passageiro mudo, sem mudar nada na Paris aquietando-se do outro lado da janela. No Brasil, se passasse, deixaria suas palavras e, pela poesia, seria eterno. A poesia o continha e revelava-o. A poesia era sua face exposta ao mundo. Não, não passaria: quem escreve deixa-se no vento, nas páginas, na história. Deixa um eco e o eco ecoa sempre. Releu os versos escritos na mão por diversas vezes, até que fechou os olhos e juntou-se aos filhos adormecidos pela voz da garota - recitando versos do outro lado do corredor.

Acordou, apenas, com o barulho do ônibus parando no ponto em que precisava descer. Esfregou os olhos e viu a brasileira sorrindo-lhe. Sorriu de volta e, percebendo que já precisaria descer, achou-se um pouco desesperado pela ideia de nunca mais vê-la. Meu pai levantou decidido a  falar com ela, talvez pedir para visitar algum dia o seu hotel, quando se ela levantou também. Pararam frente a frente, respirando um a respiração do outro. Reconhecendo-se. Sentindo o coração lhes pedir para se entregarem ao amor - eternamente. Ela apressou-se em descer, pois o motorista já os olhava entediado. Meu pai foi atrás, pensando no que dizer. Na calçada tocou-lhe o ombro.

- Espera! Eu também sou brasileiro. - disse em português.

Ela respirou fundo, como se aquelas palavras ou aquela atitude inusitada lhe tivessem causado um grande susto. Deu-lhe um tapa na mão, um pouco lívida.

- Então - disse por fim - essa é a uma outra semelhança entre nós. - e caminhou rumo ao mesmo hotel que meu pai.