por Don Chevalier

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

um - meu pai.

Meu pai era brasileiro, poeta, corajoso o suficiente nos anos 60 para procurar na França o amor da sua vida e escrever um livro longe de todos. Meus avós, italianos, trocaram o seu sobrenome ao registrá-lo no Brasil, como meio de... de nada. Simplesmente mudaram e, ao chegar em Paris, meu pai inventou uma forma afrancesada de dizê-lo - de Renóche para Renôque. Francisco Rennoche e, com essa mistura de pronúncias, fez sorrir a atendente do hotel, ao pedir um quarto. Meu pai falava francês com uma dificuldade incrível - detestava os encontros vocálicos, os apóstrofos, os biquinhos cômicos -, mas adorava o cheiro de Paris, o movimento de Paris, o pão debaixo do braço e, contemplando tudo e todos, a bela Tour Eiffel e seu emaranhado férrico agraciado por um não-sei-quantas lâmpadas acendidas durante a noite. Foi sob esse clima de cidade da paixão que meu pai tocou sutilmente a mão da recepcionista do hotel pela primeira vez,  uma semana após conversas e cantadas, ao dizer-lhe errado"rester dizer que você é bonita", sem saber que rester é permanecer e não, resta.

A atendente, entendendo pelo contexto a frase, riu novamente e pediu que a esperasse depois do expediente, pois o levaria para conhecer Paris que os almanaques de viagens não apresentavam. Meu pai passou o restante de tarde lendo o livro tradutor de francês para português, para decifrar toda a frase que ela dissera. Então, tomou um banho, colocou sua camiseta mais bonita e a esperou perto a um poste na calçada em frente ao hotel. Como via todos os dias inúmeros parisienses fumando, tentou fazê-lo também, mas o preço do cigarro e seus pulmões desacostumados à fumaça o fizeram tossir bastante - apagou a brasa, condenou o vendedor, o mundo, a tosse, o ridículo da cena e guardou o restante do maço no bolso. Achou que ninguém vira aquilo, nem Deus, nem seu coração, mas noite à dentro, quando os dois já haviam visitado dois bares cheios de franceses exaltados, Berthe disse-lhe que vira-o se desentender com o cigarro. Gargalhou. Meu pai ficou vermelho, roxo, azul, tímido. Talvez não fosse rebelde o suficiente para ter um barato ou fumar um quinquilhão de cigarros por dia. "Me dá os cigarettes!". E a moça de cabelos marrom claro, olhos verdes e lábios rouge acendendo um, parecia adquirir uma fisionomia feia de animal, um demônio francês. Meus avós, cristãos fervorosos, leitores da bíblia e presentes nos cultos, sempre tiveram uma posição rigorosa contra álcool e cigarros: "é tudo do Coisa ruim".

Assim meu pai fora educado: é tudo do Coisa ruim. Por isso tinha algo semelhante a pavor ao colocar goles de cerveja para dentro da boca - esta que era bebida escondida toda sexta-feira, num bar longe do bairro onde morava, para não deixar suspeita. Meu pai tinha medo do Coisa ruim e por isso escrevia. Era um fugitivo dos dogmas que lhe assombravam, das caveiras pintadas com fumaça de cigarro e com goles de cerveja trincando de gelada. Precisava esquecer um pouco as condenações em voz de seus pais ou, então, só tirar da memória o dia em que encontrou uma garrafa de uísque pela metade no escritório do pai. Será que o homem que tanto lhe dizia para nunca colocar uma gota de álcool na boca, era o mesmo que esvaziava pouco a pouco aquela garrafa? Por semanas viu o líquido se acabar e suas idealizações do pai definharem, trazendo um gosto amargo de ódio - talvez aquele homem de mãos grandes e olhos voltados para o céu não fosse tão santo. Começou a se rebelar quietamente - pelo medo, pela angústia, pela raiva, pela vontade de ter alguma liberdade, tentava ser rebelde, buscava o mundo para descobrí-lo. Saía de casa, pensando em nunca mais voltar, porém ainda pelo medo, pela angústia, pela raiva, pela vontade de ter alguma liberdade, voltava noite após noite. E cada madrugada de sexta-feira, quando entrava porta a dentro quietamente com bafo de álcool e, quase sempre, cheirando cigarro, meu pai precisava de confissão - mas não tinha padre que lhe escutasse; não podia contar para seus pais e pedir desculpas (não era forte suficiente para isso, não suportaria as lágrimas de sua mãe, a surra que seu pai daria e o ego destruído); não podia rogar ao céu, o medo que Deus lhe castigasse era maior que qualquer outro sentimento. Meio embriagado, meio louco e apenas um pouco acometido de razão, vinham-lhe a mente versos e escrevia. Escrevia páginas e páginas de estrofes lindas e dormia, às vezes, sobre os versos, abraçado a eles - como um filho, ao pescoço de sua mãe, buscando proteção para afastar os medos da consciência.

A despeito do mundo e as frustrações que recebia dele, acreditava no céu. e tinha medo de perdê-lo, se gostasse do mundo. Se gostasse tanto de passar a noite na casa dos outros, jogando jogos de azar, poderia perder o céu. Poderia ser deixado na terra, no inferno, no esquecimento. Tinha medo. Acreditava, contudo, que no céu haveria lugar para os poetas; para os poetas bons, que escrevessem sobre amor, esperança, paz e um mundo melhor - por mais que eles adorassem uma cerveja ao cair da tarde de toda sexta-feira. "O céu é um lugar para pessoas confessadas e que, a despeito da alma corroída pelo pecado, levam aos outros palavras de salvação. O céu é o lugar dos poetas!", pensava. O céu era o lugar para onde o seu coração se elevava a cada estrofe posta no papel. A poesia era sua forma de confessar e ser perdoado, principalmente, pela semelhança com a hipocrisia das palavras vazias de seu pai e pelas insistentes visitas ao bar do Alfredo - um italiano gordo e bigodudo, que ostentava um crucifixo na parede oposta ao balcão, para o qual meu pai não olhava ao chegar, mas fazia o sinal da cruz ao sair.

Por causa de todo o seu passado, teve asco ao ver os olhos deleitosos de Berthe tragando e soltando fumaça em seu rosto - mais uma vez, alguém que amava estava se condenando; deixando de ganhar o céu dos poetas, por um prazer... um instinto. Viu seu pai nos olhos dela e já não a achava tão linda. Estava arrependido de tê-la acompanhado, pois se permanecesse na ilusão platônica do amor entre o hóspede e a balconista não a veria naquela situação e, assim, na idealisão, poderia escrever-lhe lindos poemas. Depois, porém, de jogar a pituca de cigarro no chão e pisar por cima estava desmistificada: mulher mesclada ao Coisa ruim.

Entraram num terceiro bar, ela pediu duas cervejas, mas meu pai não bebeu. Sorvia a culpa de estar ali gota a gota. Quantas poesias precisaria escrever para ser perdoado? Uma tragada de cigarro valia quantos versos? Fazia contas quieto, quando foi surpreendido por um beijo. Seus lábios colados a outros com um intenso e estranho sabor ocre de cigarro e cerveja e, principalmente, pecado. Mas gostou do beijo. Gostou de ser beijado, enquanto estava de olhos fechados. Esquecia aos poucos o gosto da saliva dela e deixava entrelaçar suas almas: por instantes, preencheu o coração de amor frenético. Adquiria uma fisionomia feia de animal também. Aos corpos se juntarem num abraço apertado, veio à sua mente a voz ecoante e fantasmagórica de sua mãe: é tudo do Coisa ruim, veio seu pai jogando a garrafa vazia escondido, vieram as tantas cervejas tomadas em sua vida, vieram os cigarros que estavam guardados no bolso dela. E, com um receio enorme, abriu a pálpebra direita e o pouco que viu assombrou-lhe - ainda era a mesma mulher profana que lhe beijava.

Afastou o corpo, colocou as mãos espalmadas nos ombros dela, que ainda estava de olhos fechados, como se esperasse uma surpresa vinda dele. E veio: "Eu não posso fazer isso, me desculpe.", transtornado pelo caos interior, as palavras saíram-lhe em português. Berthe não entendeu, mas não abriu os olhos - mas, como de costume, sorriu. Os dentes pareciam até mais amarelados. Segurou carinhosa uma das mãos de meu pai, repousada sobre seu ombro, mas ele rapidamente se esquivou. Só com essa atitude, ela passou imaginar que a frase desentendida poderia não ser uma declaração de amor, por isso abriu os olhos e, com certo espanto, viu as bochechas cheias de lágrimas de meu pai, deixando o balcão em que estavam sentados para ir embora. Segurou-lhe o braço, pediu que explicasse o que estava acontecendo. Meu pai, a voz embolada em um soluço baixo, pedia desculpas em português - não para ela, mas para Deus. À porta virou o rosto para trás e viu Berthe, sem entender muita coisa, acendendo um novo cigarro. Inspecionou as paredes: sem crucifixos - por fugir do pecado, talvez estivesse perdoado, pensava. Sorriu e deixou o bar.

O caminho de volta foi dificultado pela falta de informação: já estava tarde e ninguém sabia ao certo dizer-lhe onde ficava a rua ou o hotel que procurava. Andando meio sem rumo naquela avenida cheia de pequenos bares, encontrou um telefone público, no qual estava preso uma lista telefônica. Procurou nos mapas do encarte o seu destino, mas a pouca claridade e a falta de referência não lhe permitiam saber ao certo em qual região procurar. Estava quase desistindo, pensando já em procurar um novo hotel para se alojar, quando sentiu um toque no ombro: era a Berthe. Em seus olhos ainda havia a mesma dúvida, de quem não entendeu nada - até um pouco mais de raiva. Depois de tudo que fizera no bar, estava desmistificado também. Perdera a chance de tê-la, o que não significava que deixaria de ser amável. Seria sempre amável e sorridente, como uma boa recepcionista atendendo um dos hóspedes, independente do lugar e da situação. Disse-lhe o caminho a seguir, o ônibus que o levaria até o bairro; ele pediu uma caneta e anotou tudo na palma da mão. Antes de ir embora, ela deu-lhe um tapa discreto no ombro, abaixou a cabeça e atravessou a rua chutando uma garrafa quebrada que estava perto do meio-fio. Meu pai a esperou trocar de quarteirão para reler as instruções.

Ao chegar no ponto de ônibus, ele ainda pensava em Berthe, porém de um jeito diferente: já não a amava e, por isso, não precisava vê-la como um erro. O passado estava sutilmente apagado pela borracha da simpatia dela. Era uma mulher boa sob a máscara da imprudência, tinha um coração enorme, capaz de perdoar em pouquíssimo tempo o fato dele tê-la deixado sozinha no bar. Queria, além de qualquer apesar, demonstrar amor - sorrir ao sujeito que, antes mesmo do alvorecer, desce ao seu encontro para reclamar do aquecedor funcionando pessimamente. Demonstrar amor às palavras grosseiras, ao mundo intragável, como os cigarros para meu pai. Seria para sempre uma recepcionista que sorria, informava endereços e pedia calma, enquanto o conserto estava à caminho - apenas. Uma mulher, acima de seus erros, amável. E mulheres amáveis, pensava, podem ir para o céu. Assim como os poetas. Assim como os arrependidos de todo o seu sofrimento. Berthe era Berthe. Berthe era o mundo. Berthe, aos poucos, deixava de ser o Coisa ruim e assumia o sua fisionomia dócil com cabelos marrom claro, olhos verdes e lábios rouge. Berthe era Amável. Por isso, meu pai sentiu-se perdoado. Isento da memória densa do pecado, poderia seguir vivendo - sem precisar de nenhum poema. Estava leve, confessado e pronto para voltar ao bar do Alfredo. Sem a culpa de precisar redimir-se, tirou do bolso a caneta, que esquecera de devolver, para registrar na outra mão quatro versos, os quais ganhariam mais estrofes anos depois e se tornariam seu poema mais famoso:

há sempre um amor perdido,
um perdão concedido,

um farol esquecido a nos banhar:
a vida não anda só.

Entrou no ônibus que acabara de parar. Nele, apenas o motorista e uma moça lendo um pequeno exemplar da antologia de Arthur Rimbaud. Era bonita, seria minha mãe um dia, mas naquele momento nem pensava nisso. Apenas lia e entreolhava o rapaz sentado a sua frente. Deixou escapar por entre os lábios quase ainda colados um sutil "os franceses são realmente bonitos" em português. Meu pai, com o rosto entre as mãos, os dedos entre os cabelos, os olhos entre as placas de latão do piso, escutou e digeriu a língua materna como um consolo à alma - não ficou agradecido pelo elogio, mas por escutar o valsear das sílabas em português. E quis mais, queria preencher-se do Brasil que faltava em território francês. Talvez o amor brasileiro, o calor brasileiro, ou pelo menos algo que mantivesse vivas as suas raízes... um farol esquecido que o banhasse sempre que sua vida parecesse andar só. Levou os olhos para ela, que agora traduzia baixinho os versos dos poemas - o português sussurrado fazia dela o amor que Paris ainda não o concedera.

E o caminho todo passou assim: sob o adormecer das ruas embalado pelo recitar dela, como uma mãe contando histórias para seus filhos terem bons sonhos. As luzes das janelas se apagavam uma a uma, cintilantes, como se o mundo fosse uma grande estrela. Meu pai sonhou com seu país por meia-hora, lembrando um pouco de como vivia completo e pleno dentro da casa de seus pais. Pensou no quarto do hotel: sem alma. Quantos por ali passaram, sem nada deixar? Também passaria... passageiro mudo, sem mudar nada na Paris aquietando-se do outro lado da janela. No Brasil, se passasse, deixaria suas palavras e, pela poesia, seria eterno. A poesia o continha e revelava-o. A poesia era sua face exposta ao mundo. Não, não passaria: quem escreve deixa-se no vento, nas páginas, na história. Deixa um eco e o eco ecoa sempre. Releu os versos escritos na mão por diversas vezes, até que fechou os olhos e juntou-se aos filhos adormecidos pela voz da garota - recitando versos do outro lado do corredor.

Acordou, apenas, com o barulho do ônibus parando no ponto em que precisava descer. Esfregou os olhos e viu a brasileira sorrindo-lhe. Sorriu de volta e, percebendo que já precisaria descer, achou-se um pouco desesperado pela ideia de nunca mais vê-la. Meu pai levantou decidido a  falar com ela, talvez pedir para visitar algum dia o seu hotel, quando se ela levantou também. Pararam frente a frente, respirando um a respiração do outro. Reconhecendo-se. Sentindo o coração lhes pedir para se entregarem ao amor - eternamente. Ela apressou-se em descer, pois o motorista já os olhava entediado. Meu pai foi atrás, pensando no que dizer. Na calçada tocou-lhe o ombro.

- Espera! Eu também sou brasileiro. - disse em português.

Ela respirou fundo, como se aquelas palavras ou aquela atitude inusitada lhe tivessem causado um grande susto. Deu-lhe um tapa na mão, um pouco lívida.

- Então - disse por fim - essa é a uma outra semelhança entre nós. - e caminhou rumo ao mesmo hotel que meu pai.

Um comentário:

  1. Que belezinha, vai escrever tua história desde os primórdios? (:

    Só pra constar minhas partes preferidas:

    '"O céu é um lugar para pessoas confessadas e que, a despeito da alma corroída pelo pecado, levam aos outros palavras de salvação. O céu é o lugar dos poetas!"'

    'Deixa um eco e o eco ecoa sempre.'

    A primeira por ter me identificado, você sabe. E a segunda pela sonoridade, [b]adoro[/b] aliterações.

    Gostei muito - pra variar. Há, no decorrer do texto, uma sinceridade atípica. 'Poetas' (leia-se 'escritores') costumam ser fingidores -tão bons fingidores a ponto de fingir a dor... você conhece a história, né? Encontrar uma sinceridade tão pura em um texto é raro e bom. A não ser, é claro, que você esteja fingindo tão bem que me enganou perfeitamente, embora não ache que seja o caso. Não que [b]cada detalhe[/b] seja puramente verdadeiro, eu realmente duvido que você não tenha rebuscado a composição (aliás, eu até espero que você o tenha feito. Rebuscar fatos reais enriquecem o texto!).

    Enfim, não importa a maneira que você encontrou de escrever e, sim, a história bem escrita... está realmente boa e otima de ler! Vou deixar a segunda parte pra depois para não matar tudo de uma vez e ficar querendo mais tão rápido. *-*

    Obrigada por lembrar de mim ao escrever e me mandar o link, é sempre bom ter novidades literárias. Boa sorte com toda a história! Espero que você vá até o fim (não que a sua história já tenha acabado, mas você entendeu), espero que você não desista!

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