por Don Chevalier

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

três - o amor.

Quando meus pais entraram no hall do hotel Le Petit, já não havia nenhum hóspede acordado, nenhuma luz acesa - exceto por um abajur sobre o balcão, iluminando o recepcionista da noite fazer palavras-cruzadas. Estava entretido o suficiente em testar seu vocabulário, para não se importar com a chegada deles, nem lhes pedir explicações ao sentarem no sofá do outro lado da sala. Meu  pai confessava ser poeta à minha mãe, algo que fazia apenas a poucos amigos, nem seus pais sabiam muito bem sobre a sua real inclinação para fazer versos; contou-lhe que pretendia escrever um livro, talvez nada de novo, apenas a antologia do que já fora escrito - omitiu apenas a motivação da sua escrita, mas isso ele não iria contar a ninguém, não deixaria os outros saberem do seu medo do pecado. Seria sempre um poeta, forte e gigante, galgando o mundo sobre seus versos.

Apenas uma vez em toda a sua vida contaria sua verdade para alguém: para mim, ao entrar dos meus quarenta anos, quando foi internado com o fígado todo devastado pela cirrose. Sem forças para escrever, precisava de um padre para receber a unção e confessar, mas já não acreditava quase nada em líderes religioso, por isso mandou me chamar e, no silêncio de um quarto branco, na loucura de um homem muito doente, no medo de não poder mais ser perdoado, revelou-me quem realmente era. Minha mãe, porém, jamais saberia que, assim como ela, meu pai tinha medo de perder o céu. Eles nunca conversariam sobre religião, até por que com o tempo deixariam de acreditar que, para estar em comunhão com Deus, precisariam frequentar um templo. Suas conversas seriam sempre assim: superficiais, como naquele momento, em que cada um descrevia-se aos poucos, apenas deixando transparecer o que não feria a alma.

- Sua vez.- meu pai, depois de ler os versos que estavam em sua mão, sem explicar o motivo de lá estarem, queria saber mais sobre a mulher que lhe encantava com seu português sem erros.

Minha mãe olhava-o nos olhos, perdida em suas palavras. "O que você quer saber?". Ele queria saber tudo, gomo a gomo saborear sua história e, por fim, fazer parte dela. Seria o seu último capítulo e depois escreveriam juntos uma história. A dois, desvendariam o mundo, construiriam o castelo que chamam de amor. Viveriam um para o outro e, na vontade de se misturarem, um dia já não saberiam dizer quem vivera, quem sofrera, quem era quem. Assim, na confusão, deixariam de confessar pecados, nunca mais com o coração amargurado. "Por que você veio pra cá?". Ela nunca tinha pensado na resposta dessa pergunta e, por um minuto, percebeu que não havia resposta certa - diria que estava em fuga de seus pais, do judaísmo e das proibições? Não, jamais falaria isso, nem sequer gostava de repartir com sua consciência ser uma fugitiva. Não viera estudar. Não pretendia trabalhar. Ficaria só por um tempo, enquanto lhe durasse o dinheiro mandado pelos pais mensalmente e suas vontades de procurar algo descente para fazer. Há quatro meses estava na França, renovando a estadia no Le Petit e, por algumas raras ligações, mentindo aos pais que estava tudo bem. Nada estava bem - começando pelo fracasso em seu primeiro emprego, que conseguira, numa padaria, fazendo para o gerente a receita de pão de ló de minha avó. O rapaz que coordenava a cozinha, deixou-lhe responsável pelos doces, junto de outras duas francesas branquelas. Sabia fazer apenas pão de ló, mousse de chocolate e pudim de laranja; alguma coisa mais, se tivesse a receita, mas não tinha o talento para cozinhar de minha avó e, com pouco tempo de trabalho, o gerente chamou-lhe e pediu que fizesse profiteróles. Sem receita, sem medidas certas, sem uma segunda chance. Tentou lembrar alguma parte da receita, que fizera poucas vezes, mas assombrava seus pensamentos o pão de ló recoberto por açúcar de confeiteiro. O que era pra ser uma tentativa de profiteróles tornou-se uma massa esbranquiçada que, pela aparência, parecia um roux e, pelo sabor, um punhado de farinha doce - posto no forno, desmoronou.

Pela humilhação, decidira nunca mais procurar emprego e, por isso, viver apenas do dinheiro vindo do Brasil, enquanto viesse, depois voltaria com suas malas e cheia de lembranças. Gostaria, na verdade, de fazer faculdade e passar mais quatro anos por lá, mas seus pais já tinham acordado o prazo máximo de permanência: um ano. Por odiar ser uma bon vivant, minha mãe passou a frequentar um curso sobre literatura francesa, por isso lia Arthur Rimbaud e outros tantos poetas que jamais teriam suas poesias traduzidas para o português, não por falta de quem quisesse fazê-lo, mas por acreditarem que das línguas latinas, apenas o francês tinha sonoridade suficiente para ostentar aqueles versos.

- Eu vim estudar literatura. -  disse, depois de algum tempo de reflexão, achando que não haveria nenhum problema em omitir algumas verdades num primeiro encontro. Mal sabia que, no futuro, viveria através de mentiras e se manteria viva apenas para lhes prolongar a existência. Mentiria para não ferir ninguém, por mais que estar repleta de uma vida falsa lhe matasse um pouco todo dia. Seria uma boa mãe, uma boa filha, teria um casamento perfeito, mas ao se olhar no espelho do banheiro toda noite antes de dormir, não veria apenas uma mulher, mas uma legião de sombras de mulheres diferentes que lhe assombraram e compunham. Naquele momento, ao omitir ser judia, estava cumprindo apenas o que pactuara consigo: ser apenas Gabrielle, do jeito que quisesse, por que quisesse, mostrando-se como quisesse. Um dia, num alvorecer com pássaros cantando, entenderia que sua viagem à França fora o início do seu deleite e do seu martírio. Um dia muito distante de si. Sem poder prever o futuro, sorriu pela boa resposta.

O relógio cuco, preso à parede atrás da mesa da recepção, alertou já serem cinco horas da madrugada e assustou o rapaz fazendo palavras cruzadas, que tirou os olhos da revista de divertimentos e perguntou ao casal se realmente tinham um quarto. Meus pais se olhavam fundo nos olhos, viajavam um dentro do outro, procurando ter certeza que dali nasceria alguma coisa. Um amor, talvez, um amor! Algo que percorresse junto deles a eternidade, que ficasse depois das palavras e do silêncio ao acabar a noite. Procuravam na alma do outro o que tirasse o sono, para sonharem acordados até o fim da noite e, mais uma vez, se encontrarem descansados e prontos para amar de novo. Quando o amor brota, vem com uma fúria indomável de erva daninha devastando tudo que há pela frente, levando ao pó os sentimentos, a sanidade, a alegria em estar completo sozinho, para germinar uma coisa nova dentro de nós, algo que faz cantar dias e dias uma canção espontânea, dar um fruto ao mundo que não sabíasse da existência. O amor é uma praga, mas no alto de sua folhagem bruta deixa beijar o céu uma flor amarela, como uma gota de luz, uma fagulha mais brilhante que o sol, dissimulando a devastação com seu jeito sublime, com sua força de flor incandescente. E a gota brilhará  no infinito enquanto existirem manhãs; se vier a noite, dormirá quieta, na espera do alvorecer, para então, reabrir e encantar novas almas - sempre... sempre.

Vagarosamente minha mãe recostou a palma da mão quente sobre o joelho do meu pai - os olhos sempre perdidos. Aquele instante poderia durar uma eternidade ou durou - bem mais, um tempo que pareceu secreto, somente deles, uma janela secreta bater dos minutos no relógios, como se pertencessem a um mundo paralelo, uma realidade oposta, em que fossem somente dois. Estavam densos como a respiração rarefeita que lhes deixava o corpo com dificuldade, nem o ar queria voltar para a realidade. Ofegantes, esperavam concretizar o que sentiam com um beijo, nada animal, um trocar de almas pelos lábios, misturando-se para nunca mais encontrar o ponta do fio que os enovelou. Pelos lábios, diriam sim um para a história do outro, aceitando (fosse o que fosse) estarem juntos. O rapaz batendo o lápis de ponta gasta sobre o balcão perguntou novamente se eles subiriam para o quarto antes do amanhecer.

- Sim, já estamos indo. A chave do quarto 12, por favor. - minha mãe respondeu, voltando a realidade do pequeno hall, com um cheiro estranho de menta, eucalipto, cigarro e pão. - Qual o seu quarto, Francisco?

- Quarto 27, por favor. - entendendo que não fariam mais nada naquela noite; deixariam suspenso o gran finale para um momento mais oportuno, em que só sentissem o próprio cheiro, experimentassem o próprio gosto e estivessem a sós.

Sem trocar de roupa, após entrar em seu quarto, meu pai deitou na pequena cama de solteiro bem ao lado da janela e ficou observando Paris. Já despontava bem ao longe os primeiros raios de sol e, diante do breu azul escuro, a Torre Eiffel iluminada era mais uma estrela, tão bonita quanto as outros. No reflexo do vidro da janela, via difusamente o sorriso de sua amada, o jeito meigo que virava o rosto envergonhada antes de rir. Podia até sentir os cabelos dela roçando seu pescoço. Estava inebriado e percebeu que embriagar-se de amor era bem melhor. Em um corredor parelelo ao seu, minha mãe tirada a maquiagem do rosto com um algodão encharcado de um líquido bem perfumado e pensando em seu amado. Já se apaixonara outras vezes e sentia que dessa vez era diferente - das outras vezes não tinha tanto medo de ficar sozinha depois do fim. Odiava pensar tanto no fim, sempre em como suportar o peso das lágrimas, mas acostumava-se. Sempre parecia pronta, mais tarde ou mais cedo, para voltar à solidão, só que dessa vez temia mais. Temia pois o fim significaria que Paris não valera a pena nem sequer no amor, então, de súbito, achou que ele poderia não gostar dela, talvez estivesse apaixonada sozinha. "Não, ele gosta de mim. Gosta até mais que eu gosto, ele parecia entregue ao olhar nos meus olhos. Maldito recepcionista da noite!". E ao olhar seus olhos pelo espelho, os encontrou cheios de água... fazia tempo que não chorava com sinceridade. "Tudo isso é besteira, para de pensar nessas coisas, Gabrielle" e decidiu viver um amor do jeito que fosse, pois quando se ama da maneira certa, o fim não é uma hipótese e a paixão, uma realidade imortal. Desenhou com o algodão um pequeno coração no ladrilho da parede do banheiro e foi dormir.

*** *** *** *** ***

No terceiro dia de conversas, minha mãe foi visitar meu pai em seu trabalho numa cafeteria. Quando chegou, ele escrevia o pedido de uma cliente alemã falando um francês péssimo, por isso não conseguia entender muito bem se ela queria um café expresso com leite ou um cappuccino. Um pouco constrangido, pediu que apontasse no cardápio o que desejava tomar. Tivera sorte dela ser uma turista idosa muito bem trajada e educada, consciente de sua péssima pronúncia que, pedindo-lhe desculpas, solícita colocou o dedo sobre uma das opções. "Um momento, perdoe a confusão, logo trarei seu pedido". Ao virar-se para deixar a cliente em paz, levou um susto ao ver numa mesa próxima Gabrielle com o braço erguido, como se lhe chamasse. Um pouco encabulado, pediu com um gesto de mão aberta que esperasse deixar os outros pedidos na cozinha.

- O que você está fazendo aqui? Veio me ver ou por acaso?

- Pode falar em português comigo, eu entendo... vim te fazer uma proposta: vamos almoçar juntos num lugar que eu já escolhi.

Meu pai aceitou, mesmo sem saber onde iriam - por ter a sensação de que seria um encontro, enfim um encontro de verdade, agendado com antecedência, com o consentimento dos dois, diferente dos muitos esbarros na hora do café da manhã e antes de dormir. Quando o relógio de parede juntou os ponteiros no 12, saíram pelas calçadas de Paris, garoava e um vento leve e frio fazia a echarpe de minha mãe voar calmamente. Meu pai, metido num sobretudo preto, mais parecia um agente secreto que um garçom. Andavam e conversavam em português, criticavam e elogiavam os franceses e nenhum dos que passavam lhes entendia o dialeto. Estavam novamente sozinhos num mundo próprio. Minha mãe levava uma grande bolsa a tiracolo, na qual estava guardada a comida, e por vezes esbarrava em outros pedestres. "Desculpa!", "Touriste...", "Educação de dar inveja, monsieur" - e o português parecia machucar os ouvidos franceses que o escutavam.

Andaram mais do que imaginavam, subiram uma ladeira interminável, desceram, viraram, como se as ruas parisienses fossem um mar bravio e eles, com a coragem de um barco a vela, quebravam as ondas, cortavam o Cabo da Boa Esperança em forma de ponte para, em paz e maravilhados, chegarem ao destino tão aguardado: a Catedral de Notre-Dame. Diante deles toda a sua beleza gótica, toda a sua imensidão, suas torres tocando as nuvens, como uma ligação direta ao paraíso, o divino tão próximo do homem. Seus vitrais cheios de cores faziam um jardim de luz refletir nos olhos. Hipnotizados pela cor leitosa, pelos tantos detalhes talhados na superfície, sentaram num banco ali por perto, absortos pela tragável imponência sagrada, comeram os sanduíches de patê e salada como se ceiassem com o próprio Deus, tomaram o refrigerante escuro e ácido, como se fosse o vinho da Santa Ceia. No pesar do silêncio, sentiam que ali, no meio de um monte de turistas desconhecidos, poderiam confessar em oração sinceramente - não por causa de uma religião pregada debaixo daquele teto curvo, mas pelo toque calmo e eterno entre a torre pontiaguda e o dedo divino. Abaixaram as frontes quase ao mesmo tempo e oraram baixinho, com pedidos parecidos: pela família, pelo coração, pela viagem, pela vida, pelos pecados, por tudo que ainda viveriam juntos e não podiam prever. Meu pai deixou o sanduíche no colo, segurou a mão de minha mãe e juntos, cabeça baixa,  alma contrita, sorriram.

- É bonito demais.

- Eu sabia que você ia gostar. Eu me apaixonei assim que a vi de longe, precisava vê-la de perto e, principalmente, repartir a experiência com alguém. Precisava estar aqui com você, porque você sabe o que é querer gritar e ninguém entender sua língua, ninguém pra te socorrer. Você sabe o que é estar sozinho, procurar o colo do amor, procurar quem realmente lhe conheça, mas encontrar apenas rostos desconhecidos. Você sabe, eu sei que sabe, eu leio nos seus olhos. Eu quis muito vir pra França... achei que encontraria liberdade andando debaixo do Arco do Triunfo, que teria a alma lavada ao encostar a mão no Rio Sena... achei que fugir do protecionismo dos meus pais traria maturidade e eu só fracassei... me iludi... me perdi e busquei e busquei encontrar uma paz, uma felicidade para me completar, afinal estamos em Paris! Não fora aqui o berço da Belle Époque? Toda a efervecência de um mundo revolucionário? Os cancans, os cabarés, o cinema, onde está a paz e a felicidade em tudo isso? E de que me vale a Belle Époque, se eu daria tudo para ver o sol raiar e simplesmente sentir-me quente, sem precisar de tantas roupas para suportar uma garoa? Paz, paz mesmo, paz de verdade, só encontrei agora, aqui, numa oração, que poderia ter sido feita em qualquer lugar do mundo, ao pé da minha própria cama no Brasil. Eu definitivamente precisava vir aqui com você pra entender tudo isso e confessar em português... obrigada.

Minha mãe recostou sua cabeça no ombro do meu pai, abraçou-lhe à altura da barriga. Pareciam apenas um, completos. E os rostos foram se aproximando vagarosamente, religiosamente, reverentes. Naquele  banco de praça tudo era muito sagrado, tudo poderia ser abençoado, se fosse pedido com sinceridade - como desejam aquele amor. Beijaram-se e, sob aquela manhã clara e bonita, brotaram duas novas flores amarelas. Dois raios de luz a consumir a alma de novos amantes, a irradiar sua beleza aos turistias que observavam de longe. Sob a sombra da catedral, o milagre do amor se concretizou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário