Meus avós maternos fugiram para o Brasil à época da Segunda Guerra Mundial, por serem judeus e temerem que o holocausto dominasse todo o continente europeu. Venderam o que tinham - que não era pouco: casas, uma pequena propriedade afastada da cidade, carro, animais e uma padaria em Rennes. Guardaram as jóias, as roupas, os retratos de família e uma Torá de gerações passadas em caixas e, cheios de incertezas, vieram a um país totalmente novo. Receptivo? Quem sabe, faltavam informações para terem certeza, pois quem vinha nunca mais voltava, nem sequer mandava cartas para dizer se estava bem: simplesmente esquecia o passado escuro na Europa tomada pelo medo. Meus avós também, acima de tudo, queriam se libertar do medo. Viver em paz.
No Brasil, o café ainda era extremamente rentável, mas a burguesia industrial estava cada vez maior e mais forte, intimidando os cafeicultores que, começando a perceber o início da crise do ouro negro, temiam perder todas as suas regalias. A fumaça das máquinas era cada vez mais presente, mais espessa, mais cheia de vida, sugando o fôlego de operários e operários adestrados para abaixar e reerguer botões. A fumaça, o concreto, os imensos galpões, nos quais tudo era gerado de matéria-bruta, manchavam a vida de uma cor opaca e um gosto azedo de tragédia e cinzas. Cidades grandes começavam a despontar. Foi em São Paulo, a cidade-máquina, que meus avós maternos se instalaram, assim como a maioria dos imigrantes europeus - aos farrapos, perdidos, braçais. Fazendo a ecônomia funcionar: traziam o conhecimento que, por causa da Segunda Grande Guerra, ficara marcado nos corações e nas cicatrizes fundas a percorrer os braços nus - feitas pelas ferrozes máquinas devoradoras de cansaço humano.
Meu avô, primeiramente, se misturou às gentes de uma fábrica de tecelagem, emprego que não pretendia manter por muito tempo. Já pensava em como investir o dinheiro previamente reservado em algum bom negócio - talvez se associar a uma grande empresa. Um dia andando pelo centro, voltando cansado da primeira semana de trabalho, maldizendo o calor infernal que fazia em meio as máquias, encontrou um dos seus amigos judeus que nunca mandara carta para dizer como passava no novo país. Conversando um pouco, descobriu que Benjamin tinha um cargo alto numa das primeiras indústrias alimentícias do Brasil. Meus avós tinham adquirido boa parte de suas posses na França criando receitas de pães, massas, tortas, bolos e quitutes - minha avó inventara um pão de ló conhecido em toda a região de Rennes. Se não fosse pela guerra, a ideia deles era abrir uma outra padaria maior e mais refinada em Paris. Veio, porém, o nazismo, o medo, a falta de tudo, o dinheiro contado, a vida escondida - judeus. Por isso, foram obrigados a fugir como animais para o Brasil, mas agora viam novamente o brilho intenso da esperança lhes ofuscar a vista: menos de um mês após desembarcarem, comandavam a cozinha, com parte nos lucros, da primeira fábrica de pães de São Paulo e, muito provalmente, do país.
Em meio a todo o alvoroço de procurar casa, emprego, oportunidades novas, aprender o idioma, minha avó sofria intensos enjoos e possíveis estados febris. Assim que veio a enfermeira para vê-la, não teve dúvida: estava grávida, talvez já há dois ou três meses. Primeiro, o susto; depois, o riso. Grávidos! Seriam pais! Ganhariam uma fagulha de amor e paz e esperança na pequena forma de um bebê - para romper o pranto e a angústia aprisionados nos peitos dos dois imigrantes. O Brasil começava-lhes a parecer bonito: era fértil. Dava vida a quem procurava uma nova história para contar. E a vida foi crecendo dentro ventre, deixando esbarrar às vezes a barriga na esteira de biscoitos. Os funcionários, na sua maioria mulheres, riam-se e preocupavam-se com a gravidez de Adele - a francesa com traços bonitamente fortes, ríspidos, sofridos e sorrisos escassos. Quem a visse poucas vezes, achava-a feroz e intragável, pela falta de vocabulário e os olhos a devorar alegrias. Era uma mulher ferida, com as lembranças enferrujadas pelo nazismo - perdera muita gente de sua família judia e, mais uma vez, via-se sem pátria. O Brasil mostrava-se receptivo, colorido, com suas danças, suas músicas, sua diversidade de culturas, talvez um bom novo país para chamar de seu.
Ela, porém, simplesmente não conseguia retribuir os sorrisos, porque tinha medo do apego. Medo de um dia ser novamente expulsa e ter que esquecer sua história num baú sombrio da memória. Tinha medo de criar raízes num lugar onde seria imigrante sempre. Por isso, não sorria, não se abria, não se deixava conhecer. O enigma era sua forma de estar completa, de estar repleta da única pátria que jamais a deixaria partir: ela mesma. No trabalho também encontrava um paraíso. Sempre que ajudava os menos habilidosos a colocar a massa crua dentro das formas, sentia-se elevada ao céu e deleitava-se em ser, por debaixo de todas as máscaras de insipidez, uma mulher boa. Difíceis eram as horas em que estava longe da fábrica, pois amava o que fazia, amava sentir o cheiro da fornada nova de biscoitos e pães, amava saber, no fim do dia, que sua receita de pão de ló estava cada vez mais presente nas casas brasileiras. Amava, mesmo que renegando a idéia, o fato do Brasil tornar-se sua pátria. Depois dos seis meses de gravidez não pôde mais sair tanto de casa - não tinha pique, não conseguia ficar tanto tempo de pé e, desagradavelmente, tinha que ir muitas vezes ao banheiro num mesmo dia. Enclausurada em casa, pois odiava não poder fazer nada, lia o Torá e orava agradecendo pela gravidez e pela estranha sensação de gostar de janeiro, por maior que fosse o calor.
Ela, porém, simplesmente não conseguia retribuir os sorrisos, porque tinha medo do apego. Medo de um dia ser novamente expulsa e ter que esquecer sua história num baú sombrio da memória. Tinha medo de criar raízes num lugar onde seria imigrante sempre. Por isso, não sorria, não se abria, não se deixava conhecer. O enigma era sua forma de estar completa, de estar repleta da única pátria que jamais a deixaria partir: ela mesma. No trabalho também encontrava um paraíso. Sempre que ajudava os menos habilidosos a colocar a massa crua dentro das formas, sentia-se elevada ao céu e deleitava-se em ser, por debaixo de todas as máscaras de insipidez, uma mulher boa. Difíceis eram as horas em que estava longe da fábrica, pois amava o que fazia, amava sentir o cheiro da fornada nova de biscoitos e pães, amava saber, no fim do dia, que sua receita de pão de ló estava cada vez mais presente nas casas brasileiras. Amava, mesmo que renegando a idéia, o fato do Brasil tornar-se sua pátria. Depois dos seis meses de gravidez não pôde mais sair tanto de casa - não tinha pique, não conseguia ficar tanto tempo de pé e, desagradavelmente, tinha que ir muitas vezes ao banheiro num mesmo dia. Enclausurada em casa, pois odiava não poder fazer nada, lia o Torá e orava agradecendo pela gravidez e pela estranha sensação de gostar de janeiro, por maior que fosse o calor.
Após uma madrugada e manhã de contrações, sete meses depois de saberem da gravidez, nasceu. A enfermeira, ainda sem lavar o bebê choroso, deu-lhes a notícia com alto grito: É menina. Meus avós pouco entenderam - o português ainda lhes parecia um monstro, um enigma sem resposta a lhes sugar muitas horas de estudo. Sabiam falar o necessário na fábrica: não é assim, aprenda comigo, menos massa, pão, biscoito, pode ir embora, farinha, chocolate, ovos, fermento, receita e algumas outras palavras avulsas e pequenas frases - e o mais difícil era pronunciar o til (~). Mal sabiam ainda as complicações para flexionar todos os verbos, ainda mais os irregulares. Ou pior, usar conjunções - até o momento, ninguém lhes disseram que, por conta de uma palavrinha pequena, duas orações podiam interagir de diversas formas. O mundo se baseava nas frases sem vírgulas - da letra maiúscula ao ponto final, com apenas um sujeito, um verbo mal conjugado, talvez dois objetos, pouquíssimos advérbios e quase nenhuma figura de linguagem. Se feito necessário conversar algo mais sério com brasileiros, ou falavam em inglês ou pediam para Benjamin traduzir.
Por isso, quando a enfermeira gritou "É menina", acharam que ela falava outro dialeto. Sabiam por intuição que o sujeito vinha antes do verbo e, se é fosse o verbo, não havia sujeito. Sabiam o que era pão, biscoito, farinha, ovo, chocolate, trabalhos, os números estratégicos para se comunicarem com os funcionários e sócios da fábrica, mas ainda não sabiam o que era menina. Eufóricos, pouco pensaram na sentença incompreensível, queriam mesmo era saber o sexo do bebê. "O que ser?", perguntava o pai repetidamente, "o que ser?". "É menina!". "O que ser?", "o que ser?". A enfermeira, percebendo a ineficácia da frase, apontou para si própria e para minha avó - "ela é mulher, menina" repetindo pausadamente, até perceber os olhos azuis de meu avô se explodirem em alegria. "Munier menin" ele gritava agora, como se fosse "nossa filha é uma menina linda" em português. "Munier menin, Adele!". Minha avó ria cansada e, assim que puseram em seu colo o bebê, arriscou o português inventado, "munér meni" baixinho ao pé do ouvido, deu um beijo nas bochechinhas ameaçando um choro e, desde então, amou.
Em meio a amor e cheiro de quitutes, minha mãe viveu toda a sua infância. Meus avós, mesmo antes de seu nascimento, tinham concordado em contratar uma empregada que, além de ajudar nas tarefas da casa, falasse com eles e com Gabrielle sempre em português, assim toda a família aprenderia de uma vez só. Era engraçado ver a pequena menina aprendendo a juntar fonemas - "mamá, pode í lá?" - e os pais buscando traduzir a resposta obtida mentalmente em francês para o português - "não pode ir, estar frio e chover". A professora aguentava o riso, advertia o erro - "não pode ir, está frio e chove" -, assim passaram os anos: a mulata ora cozinhando ora passando e ora sendo a patroa, repreendendo os erros da fala, as frases sem sentido. Um dia decidiram chamar Rosa, a empregada mulata, para uma conversa a sós e, lendo um discurso já escrito e corrigido, ofereceram-lhe um aumento de salário e os papéis de governanta da casa e professora. Contraram outras duas mulatas, estas que efetivamente passaram a cuidar da casa e que olhavam com inveja a outra que ganhava mais para mandar e desmandar sobre elas.
Na segunda metade dos anos 50, quando passaram a dar bailes e receber os convidados falando português, meus avós perceberam que a governanta cometia erros crassos, os quais os ensinara e eles papagaiavam por aí, imaginando ser o português mais culto que existia. Seria um privilégio mim dançar com você - e os convidados achavam graça no erro, mas nada diziam. Preocupados com as pequenas minúcias, enfim, acharam melhor procurar uma escola e se acertarem com um professor de verdade. Pouco tempo depois do início das aulas reais, meus avós passaram a ter confiança na língua, a ponto de corrigir a governanta, que percebeu já não exercer nenhum controle sobre os patrões. Por fim, como temia, voltou a governanda a ser chamada Rosa e cozinhar todo dia e passar roupa quando tinha e dividir com as outras duas mulatas - que já não a olhavam com desdém, mas com pena da mulher rebaixada - as tarefas. E o português domava e encantava a casa, ficando cada vez mais bem falado e gostado. Minha mãe, porém, era a única que preferiria falar apenas em francês com seus pais, para manter viva as origens européias. Meus avós não gostavam dos diálogos na língua materna, pois neles relembravam a pronúncia e o sotaque voltava a fazer cócegas no português correto, que agora usavam frequentemente no dia-a-dia. Pelo anceio que tinha de resgatar as suas origens, valsear a língua na boca para falar Comment vas-tu? ou Comment t´appelles-tu?, por apreciar tanto o francês nativo, além do pouco aprendido na escola, minha mãe decidiu viajar para França e passar por lá, pelo menos, um ano descobrindo o país que seus país exaltavam com saudade.
Pouco antes de estourar a Ditadura Militar, ela deu adeus ao país tropical, levando dois casacos pesados na bagagem, pois sabia (e gostava de saber) do intenso frio parisiense. Quando o avião decolou, olhou pela janelinha a cidade ficar pequena, cada vez menor e menor. De repente, passou pelas nuvens e lá embaixo, o que eram prédios ou cidades ou pessoas ou parques pareciam a mesma massa cinzenta - pulsando em crescimento. Estava livre do Brasil, mas ainda não se amarrara à França - no meio do azul do céu, era somente Gabrielle, buscando descobrir quem realmente gostaria de ser, numa década de tantas transformações, em que a música e a cultura gritavam por liberdade, clamando em alto e bom som que a mentalidade dos "homens de mais de 30 anos" era uma tremenda besteira! Ela queria a liberdade, queria ser livre como estava livre de pátria no meio das nuvens, mas seus pais não a permitiam, diziam que essa liberdade pregada nas músicas insultava a religião e, desde pequena, ela fora ensinada a ser uma boa judia.
Toda sexta-feira à noite, minha avó acendia uma vela para receber o Shabat e minha mãe adorava ver a chama romper a escuridão da ante-sala onde ficava acesa. Brincava de fazer sombras e, certas vezes, tinha até medo dos desenhos que criava. Meus avós, quando viam a brincadeira, a repreendiam - "não brincar com o sagrado". Tentavam ensiná-la a temer a religião, a respeitar alguns costumes raramente praticados, até porque os amigos judeus de meus avós, assim como eles, pouco iam a sinagoga, por temerem ainda a perseguição. O medo era sempre uma sombra nos gostos de um povo tão sofrido. Faziam, quando dava, quando o trabalho não era muito, algumas das cerimônias, mas nada muito extravagante. Um jantar com alguns cânticos do Sidur no Rosh Hashaná e na Pessach, como forma de compensar a falta de empenho em seguir rigorosamente a tradição. Além, minha avó lia o Torá quando podia, meu avô ajudava os judeus que chegavam mais pobres que ele ao Brasil e ambos tentavam dar uma boa formação judaica à filha. Ensinaram-na hebreu, bem depois de aprender a escrever na escola. Todo dia de manhã, durante o café, ela tinha que recitar um verso decorado da Torá ou, se não fosse possível, ler um - às vezes, pelas reflexões que meu avô fazia com diversos termos em hebraico, ela chegava atrasada à escola. Quando completou doze anos, passou pela cerimônia do Bat Mitzvah, na qual foi a sinagoga pela primeira vez e última.
Como praticar uma religião que pouco fazia parte de seu cotidiano? Não sabia, mas tentava. Buscava fazer o que meus avós mandavam - apesar da falta de vontade, acendia as velas de sexta-feira à noite e se aborrecia por não poder mais fazer sombras com a claridade da chama. Como respeitar uma tradição que lhe parecia fugaz? Por que não comer carne de porco, pintar o cabelo, beber vinho? Não entendia muito bem quando minha avó explicava, mas obedecia. Obedecia sempre e renegava a vida por medo. Não tinha medo do nazismo, não se preocupava com o julgo dos homens, poderia ir na sinagoga todos os dias, desde que isso lhe significasse algo, mas não dizia nada para ela estar naquele templo. Sentia apenas medo. Um medo do deus criado por sua mãe, um deus que repreendia e mandava tempestades quando era desobedecido. Tinha medo de um deus cruel, o qual não lhe era compreensível - "por que Deus maltrataria tanto um povo? Por que Deus tira toda a felicidade dos judeus? Por que Deus não pode apenas nos amar?" e temia. Temia porque minha avó mandava e, nos olhos dela, havia sempre um furacão a emanar a ira desse deus. Minha mãe, no entanto, não acreditava que fosse assim - que Deus fosse cruel. Deus é amor e a perdoaria se errasse, mas minha avó, não - para a francesa de poucos risos o perdão não existia para ser concedido sempre, para ela toda mudança era do Coisa ruim e precisava ser evitado ao máximo.
O rock, os cabelos pintados, as mini-saias, os desejos novos por aventura: tudo do Coisa ruim. Minha mãe, apesar de sua formação, queria experimentar o mundo e descobriria com o tempo, com as próprias mãos, com as marcas na sua alma nua, com o riso ou com o choro, se tudo aquilo era do Coisa ruim mesmo. Queria experimentar muito mais que novas receitas de broas e pães - queria fazer realmente parte da efervecência cultural e de pensamento que inundava a Europa e respingava em todos os países do mundo. Esse era o motivo pelo qual gostava de buscar suas origens franceses - mantinha viva a sua rebeldia contra as culturas que seus pais escolheram para ela: brasileira e judaica. Se eles a proibiam de se encontrar, não aceitaria de pronto a língua que seus pais optaram por falar, não veria o sagrado onde seus pais viam. Seria ímpar na França, como quisesse.
Talvez pintasse o cabelo ou comesse carne de porco. Ainda não decidira. Tinha apenas uma verdade: iria viver. Iria viver a vida que as canções diziam ser a mais legal. Tinha medo das drogas, mas poderia experimentar, quem sabe? "Deus sabe tudo", pensou e afastou a ideia de súbito balançando a cabeça. Deveria escolher entre o mundo e Deus, como dizia seus pais, como inferiam que estava escrito na Torá - então, temia. Temia perder o céu. Temia ir longe demais. Se gostasse de estar longe de Deus, cercada pelo pecado, haveria perdão? Ela acreditava que sim, mas sua mãe, não. Nem o deus de sua mãe a perdoaria. Por isso, não iria longe demais, nunca - se afastaria o pouco suficiente para deixar apenas uma parte do corpo envolta nas trevas do pecado. Mas manteria uma oração, sempre. Um pedido de perdão. "Pode existir um meio-termo, tem que existir um meio-termo. Não posso usar drogas, mas posso usar mini-saia. Posso beber vinho, desde que não coma carne de porco... e assim eu descobro o mundo: evitando ali, abusando aqui, sempre pondo um peso e um contra-peso para não cair da corda". E sorriu com sua conclusão, que parecia renovar-lhe os ânimos. Percebeu que gesticulava sozinha, como se conversasse com as próprias mãos, e que o rapaz sentado ao seu lado a observava. "Bonsoir, monsieur", disse a ele e admirou-se da boa pronúnica. Pousou as mãos no colo, satisfeita. Sentiu-se um pouco mais rebelde, um pouco mais viva, um pouco mais Gabrielle e queria mais, muito mais.
Toda sexta-feira à noite, minha avó acendia uma vela para receber o Shabat e minha mãe adorava ver a chama romper a escuridão da ante-sala onde ficava acesa. Brincava de fazer sombras e, certas vezes, tinha até medo dos desenhos que criava. Meus avós, quando viam a brincadeira, a repreendiam - "não brincar com o sagrado". Tentavam ensiná-la a temer a religião, a respeitar alguns costumes raramente praticados, até porque os amigos judeus de meus avós, assim como eles, pouco iam a sinagoga, por temerem ainda a perseguição. O medo era sempre uma sombra nos gostos de um povo tão sofrido. Faziam, quando dava, quando o trabalho não era muito, algumas das cerimônias, mas nada muito extravagante. Um jantar com alguns cânticos do Sidur no Rosh Hashaná e na Pessach, como forma de compensar a falta de empenho em seguir rigorosamente a tradição. Além, minha avó lia o Torá quando podia, meu avô ajudava os judeus que chegavam mais pobres que ele ao Brasil e ambos tentavam dar uma boa formação judaica à filha. Ensinaram-na hebreu, bem depois de aprender a escrever na escola. Todo dia de manhã, durante o café, ela tinha que recitar um verso decorado da Torá ou, se não fosse possível, ler um - às vezes, pelas reflexões que meu avô fazia com diversos termos em hebraico, ela chegava atrasada à escola. Quando completou doze anos, passou pela cerimônia do Bat Mitzvah, na qual foi a sinagoga pela primeira vez e última.
Como praticar uma religião que pouco fazia parte de seu cotidiano? Não sabia, mas tentava. Buscava fazer o que meus avós mandavam - apesar da falta de vontade, acendia as velas de sexta-feira à noite e se aborrecia por não poder mais fazer sombras com a claridade da chama. Como respeitar uma tradição que lhe parecia fugaz? Por que não comer carne de porco, pintar o cabelo, beber vinho? Não entendia muito bem quando minha avó explicava, mas obedecia. Obedecia sempre e renegava a vida por medo. Não tinha medo do nazismo, não se preocupava com o julgo dos homens, poderia ir na sinagoga todos os dias, desde que isso lhe significasse algo, mas não dizia nada para ela estar naquele templo. Sentia apenas medo. Um medo do deus criado por sua mãe, um deus que repreendia e mandava tempestades quando era desobedecido. Tinha medo de um deus cruel, o qual não lhe era compreensível - "por que Deus maltrataria tanto um povo? Por que Deus tira toda a felicidade dos judeus? Por que Deus não pode apenas nos amar?" e temia. Temia porque minha avó mandava e, nos olhos dela, havia sempre um furacão a emanar a ira desse deus. Minha mãe, no entanto, não acreditava que fosse assim - que Deus fosse cruel. Deus é amor e a perdoaria se errasse, mas minha avó, não - para a francesa de poucos risos o perdão não existia para ser concedido sempre, para ela toda mudança era do Coisa ruim e precisava ser evitado ao máximo.
O rock, os cabelos pintados, as mini-saias, os desejos novos por aventura: tudo do Coisa ruim. Minha mãe, apesar de sua formação, queria experimentar o mundo e descobriria com o tempo, com as próprias mãos, com as marcas na sua alma nua, com o riso ou com o choro, se tudo aquilo era do Coisa ruim mesmo. Queria experimentar muito mais que novas receitas de broas e pães - queria fazer realmente parte da efervecência cultural e de pensamento que inundava a Europa e respingava em todos os países do mundo. Esse era o motivo pelo qual gostava de buscar suas origens franceses - mantinha viva a sua rebeldia contra as culturas que seus pais escolheram para ela: brasileira e judaica. Se eles a proibiam de se encontrar, não aceitaria de pronto a língua que seus pais optaram por falar, não veria o sagrado onde seus pais viam. Seria ímpar na França, como quisesse.
Talvez pintasse o cabelo ou comesse carne de porco. Ainda não decidira. Tinha apenas uma verdade: iria viver. Iria viver a vida que as canções diziam ser a mais legal. Tinha medo das drogas, mas poderia experimentar, quem sabe? "Deus sabe tudo", pensou e afastou a ideia de súbito balançando a cabeça. Deveria escolher entre o mundo e Deus, como dizia seus pais, como inferiam que estava escrito na Torá - então, temia. Temia perder o céu. Temia ir longe demais. Se gostasse de estar longe de Deus, cercada pelo pecado, haveria perdão? Ela acreditava que sim, mas sua mãe, não. Nem o deus de sua mãe a perdoaria. Por isso, não iria longe demais, nunca - se afastaria o pouco suficiente para deixar apenas uma parte do corpo envolta nas trevas do pecado. Mas manteria uma oração, sempre. Um pedido de perdão. "Pode existir um meio-termo, tem que existir um meio-termo. Não posso usar drogas, mas posso usar mini-saia. Posso beber vinho, desde que não coma carne de porco... e assim eu descobro o mundo: evitando ali, abusando aqui, sempre pondo um peso e um contra-peso para não cair da corda". E sorriu com sua conclusão, que parecia renovar-lhe os ânimos. Percebeu que gesticulava sozinha, como se conversasse com as próprias mãos, e que o rapaz sentado ao seu lado a observava. "Bonsoir, monsieur", disse a ele e admirou-se da boa pronúnica. Pousou as mãos no colo, satisfeita. Sentiu-se um pouco mais rebelde, um pouco mais viva, um pouco mais Gabrielle e queria mais, muito mais.
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